9.9.11

TRECHOS DO ACERVO

    Dando continuidade às comemorações dos 50 anos da Campanha da Legalidade, publicamos o relato de Nydia Guimarães, viúva de Josué Guimarães, sobre a participação do escritor naquele movimento. 


O TANQUE DAS CINCO MAIS OUTRAS HISTÓRIAS 


NYDIA GUIMARÃES


    Eu estava me preparando, me vestindo para ir à Câmara trabalhar, me lembro muito bem disso, quando o Brizola fez aquele primeiro pronunciamento. Nós estávamos todos sob tensão. Eu era taquígrafa da Câmara e estávamos acompanhando de perto, eu e o Josué. Nós participamos de todo o Movimento de uma maneira intensa e foi uma das coisas mais maravilhosas que eu vi na minha vida. Aquele sentimento de união, de todo mundo junto, de todo mundo no mesmo barco, digamos assim... A tensão incrível daqueles dias foi fantástica. 
    Quando foram tomar conta do Palácio, fazendo barricadas, eu fiquei em casa. Aí teve um nervosismo maior porque havia pouca comunicação. Eu não podia me comunicar com Josué. Ficávamos em barreiras diferentes. Eu na Câmara e ele no Palácio. E aconteceram coisas engraçadas... 


    O Josué, esperando os tanques – porque “Vêm os tanques da Serraria! Vêm os tanques! Vêm os tanques!” – e os tanques não chegavam aqui. Geralmente eles estragavam no meio do caminho. Na Praia de Belas quebravam os tanques e não chegavam nunca no Palácio. E todo mundo esperando os tanques... Acordaram o Josué lá pelas quatro da manhã e disseram: 

    – Olha, vêm vindo os tanques, vêm vindo os tanques! 

    O Josué dá uma olhadinha e diz: 

    – Que horas são? 

    – São quatro horas. 

    – Então me chama pro tanque das cinco! 

    E não chegavam aqueles tanques. 

   Noutra ocasião, (vinham chegando mesmo tanques) estavam todos na janela do Palácio com aqueles sacos de areia, aquela coisa toda, e alguém se queixou que não tinha lugar para ver da janela. O Josué virou para trás e disse: 

   – Olha, não te preocupa muito que à primeira rajada que eles derem vai desocupar bastante lugar. Daí tu entras. 

    Foi assim que limparam as janelas. Saiu todo mundo dali. 

  Depois que o General Machado Lopes aderiu, foi aquela coisa impressionante, aquela emoção... A gente sabia que o Machado Lopes ia para o Palácio. Meio-dia o Brizola tinha marcado para recebê-lo. A gente ainda não sabia qual ia ser a posição dele, e de repente o Machado Lopes aderiu. Foi uma coisa sensacional. Aquilo foi um alívio total pra gente. Pelo menos aqui nós estávamos juntos. Mas não sabíamos ainda como seria a reação do resto do país, e principalmente da Aeronáutica. A gente tinha medo, porque (diziam) estava para ser bombardeada Porto Alegre, e os navios vinham para cá também, essa história toda... 

    O Brizola chamou o Josué e mandou-o ir ao Rio de Janeiro, para organizar uma rádio clandestina. Montar uma rádio clandestina da Legalidade no Rio! E o Josué foi para lá com o nome trocado. “Samuel Ortiz”, era o nome dele. Foi recebido pelo Fernando Sabino, pelo Paulo Mendes Campos, pela turma... Esconderam o Josué na casa de um amigo nosso que morava sozinho. E ele ficou articulando os preparativos para a tal rádio clandestina. Conseguiu um radioamador pra montar a rádio, que seria colocada num automóvel. 

   Havia os goniômetros que localizavam as rádios, de onde estavam irradiando. Então, eles não podiam ficar num lugar só. 

    E o Josué combinou com esse radioamador um código. O radioamador seria o “alfaiate” e o Josué o “freguês” que estaria encomendando um terno. E eles se refeririam ao “terno”, e não à radio. De repente, numa das conversas a respeito de uma antena, o Josué telefona pro radioamador que diz: 

    – Olha aqui, seu Samuel, tem um problema com o seu terno. Eu não vou poder fazer uma lapela de 20 metros; tem que fazer de 40 metros. 

    Houve um impacto. Uma lapela de 40 metros! Imagina... Noutra ocasião, o Josué tentava trazer uns aviões para cá, como defesa. Diversos aviadores estavam do nosso lado e queriam vir para defender o Rio Grande do Sul. Ele telefona em código, esse negócio todo, e diz de lá para cá: 

    – Olha, nós já temos, certos, cinco pássaros, mas só temos três pilotos. 

    Se houvesse alguém escutando, você imagina, né?! 

   Eles conseguiram montar a rádio clandestina no automóvel de um amigo. Foram para a casa de outro amigo, em Petrópolis, para fazer a primeira transmissão de lá. A transmissão que foi gravada aqui, pelo Hamilton Chaves. 

   Eles estavam transmitindo com muita dificuldade, e de repente foram avisados de que tinham sido captados pelo goniômetro. Tiveram que sair rondando por Petrópolis. Eles irradiavam, rodando com o carro. E a polícia do Lacerda atrás deles. Quando os localizavam, eles iam para outro lado. Foi sério. Passaram por muitos riscos nessa situação. Aí houve uma coisa engraçada, que eu não sei contar muito bem. Eu pedi muito para que o Josué escrevesse essas histórias da Legalidade. E o Josué nunca conseguiu escrever nada autobiográfico. Era uma coisa muito estranha dele. Ele nunca conseguiu escrever algo sobre ele. O que escrevia sempre era ficção. 

    Souberam, no Rio, que estava lá um emissário do Brizola. Houve uma reunião de governadores e o Josué foi convocado para esse encontro. Era o Nei Braga, do Paraná, o Carvalho Pinto, de São Paulo e outros. Fizeram essa reunião no Rio, e chegaram à conclusão de que tinham que falar com o Brizola. O Josué comunicara-se com o Hamilton para ver se eles conseguiriam reunir-se com Brizola. E eles viriam para Porto Alegre. Foram para o aeroporto juntos, os governadores e o Josué. A polícia do Lacerda já sabia que o Josué estava lá e foi cercando, mas não chegava até ele por causa dos governadores. 

    Pegaram um avião para ir a São Paulo, buscar o Carvalho Pinto. Em São Paulo, Carvalho Pinto considerou que não poderiam ir a Porto Alegre sem que Brizola se responsabilizasse inteiramente pela ida e volta deles. Precisariam ter uma palavra escrita, teriam que ter um papel de Brizola. E Josué deveria vir ao Rio Grande do Sul buscar esse papel para que eles pudessem vir para cá. Eles não viriam, assim, no mais. Essa foi a ponderação do Carvalho Pinto, conversando no aeroporto. Foi um embrulho danado. Com a Casa Militar, com o Carvalho Pinto, com os governadores que tinham ido com o Josué... Então conseguiram um aviãozinho com um piloto para virem até o Rio Grande do Sul falar com o Brizola e levar por escrito o compromisso de que eles poderiam vir e voltar livremente, que não haveria problema. O Josué estava cansadíssimo, pois tinha chegado de Petrópolis depois daquela corrida toda. Dormiu no avião. Quando acordou, o avião estava de cabeça para baixo, no meio do maior temporal do mundo. E não puderam vencer o temporal; tiveram que voltar pra São Paulo. 

    E eu recebi... este foi o pior momento pra mim, porque a notícia que o Hamilton recebeu aqui era a de que o avião teria caído e o piloto mais o Josué teriam morrido. O Hamilton pega essa gravação e leva lá em casa. E eu tinha gravador, trabalhava com gravador... e ele põe essa gravação. Acho que o pior momento pra mim, da Legalidade, foi esse. 

    O Josué conseguiu voltar a São Paulo, e junto com esses governadores, (o Nei Braga eu tenho certeza de que estava) eles voltaram para o Rio. Mas a polícia estava toda no aeroporto, esperando o Josué. Foi um negócio assim, de 007, porque ele desceu entre dois governadores, que seguravam no braço dele. Saíram num carro, e a polícia toda atrás. E vai por aqui, vai por ali, em Copacabana entraram na garagem de um edifício. Josué desceu e saiu pela outra rua. A polícia ficou toda parada, esperando o carro sair, mas o Josué já tinha conseguido entrar no apartamento sem que fosse preso. Mas aí ele estava sem proteção. Foi a maior dificuldade o Josué conseguir voltar pra cá sem ser preso. 

    Houve uma coordenação toda também dos governadores para colocarem o Josué no avião para Porto Alegre. Porque ele já não estava mais incógnito, já não era mais o “Agente Secreto”, tinha deixado de ser secreto... Quando ele chegou aqui, a gente já não sabia mais nada, porque as comunicações com Rio e São Paulo estavam horríveis; não se conseguia comunicação. Quando ele chegou aqui, vivo, foi o maior espanto, o maior alívio. 

    O Hamilton tinha essas gravações; não sei o que foi feito delas, pois o Hamilton já faleceu também. Josué irradiava, de lá, assim: “A Rádio Clandestina da Legalidade...” era esse o negócio. 

    Aquele tempo foi uma coisa fantástica, maravilhosa mesmo. Não se pode transmitir para aqueles que não o viveram como era o ambiente, o clima, o que a gente sentia, de empolgação total. Uma coisa linda! Foi tão forte para o Josué, foi uma experiência tão interessante pra ele, que ele nunca conseguiu escrever sobre isso. Marcou muito o Movimento. Independente de partidarismo, independente de posição social, independente de idade. Era uma coisa tão bonita ver aqueles batalhões na rua, fazendo ordem unida, aprendendo a marchar, aprendendo a lidar com armas. Tinha gente de todas as idades, em toda parte. O pessoal que vinha do interior, montado a cavalo, lá na Praça da Matriz, se colocando às ordens do governador... Foi impressionante isso. No dia em que o Brasil despertar, inteiro, para fazer uma Legalidade dessas, em nosso benefício total, vai se uma coisa maravilhosa. Acho que nós estamos precisando disso. O povo não sabe a força que tem. Nós não temos mais líderes – a verdade é essa – jovens, não temos nenhum... De 64 para cá, não permitiram que se formasse nenhum líder. Não permitiram, essa é a verdade. Como é que se formaram os líderes? Como é que surgiram os líderes estudantis como o Brizola, por exemplo? O que é que fizeram com a UNE? O que é que fizeram com todos os organismos estudantis? Nós temos um hiato de líderes em toda uma geração. E pagamos por isso.



Do livro Nós e a Legalidade: depoimentos (IEL/AGE, 1991)