Comemorando os 50 anos da Campanha da Legalidade, trazemos aqui o texto O depoimento de uma jovem, de Mozart Pereira Soares, que consta no livro Nós e a Legalidade, publicado pelo IEL em 1991.
Capa: Leonardo Gomes |
MOZART PEREIRA SOARES
De repente, aquela bomba: Jânio Quadros renunciou!
A gente atônita e perplexa se perguntava:
- Não era só boato? Seria possível que tal acontecesse com aquele homem-voto, levado ao poder pela maior avalanche de sufrágios que o Brasil conhecera nos últimos tempos?
É verdade que ele começara a desgastar-se com medidas medíocres e impopulares. Crescia a legião dos que não concordavam com suas atitudes autoritárias, sua rispidez, exigências de uniformes no trabalho, proibição de rinhas.
Cada vez maior número de contestadores somava-se aos que não aceitavam sua campanha espetacular, a vassoura demagógica com que varreria corruptos, negocistas e fraudulentos.
Repudiavam-se suas promessas eleitoreiras, feitas entre cabelos cuidadosamente desalinhados, caspas artificiais, derramadas sobre a roupa escura...
Nesses momentos ele parecia tão solidamente montado no poder que seria absurdo pensar-se em queda. No entanto, as notícias não eram boatos, como alguns ainda esperavam. Horas depois, a televisão mostraria o presidente deposto, subindo para um navio, em completo desequilíbrio, no seu passo indisfarçável de ébrio. Confirmava-se a voz corrente de que ele era um alcoólatra.
Nesses momentos ele parecia tão solidamente montado no poder que seria absurdo pensar-se em queda. No entanto, as notícias não eram boatos, como alguns ainda esperavam. Horas depois, a televisão mostraria o presidente deposto, subindo para um navio, em completo desequilíbrio, no seu passo indisfarçável de ébrio. Confirmava-se a voz corrente de que ele era um alcoólatra.
Tão inusitado acontecimento levou o povo a mil indagações. E foi o próprio Jânio quem procurou difundir a versão de que fora deposto por “forças ocultas”.
- Golpe da direita, dizia-se, com apoio das Forças Armadas.
- Interferência, sem disfarce, do Embaixador norte-americano, Lincoln Gordon, acrescentava-se.
- Preocupações das Forças Armadas com os rumos políticos de Jânio Quadros, que hostilizava frontalmente os Estados Unidos, manobrando em direção aos socialistas. E a gota d’água desta situação estaria contida no gesto de Jânio Quadros, ao condecorar Che Guevara.
Afirmava-se que ele pretendia passar um golpe à Nação: fazendo-se de vítima daquelas supostas forças ocultas, intentara renunciar para retornar ao poder nos braços do povo, capaz assim de enfrentar a gregos e troianos.
Sua carta de renúncia, assinada a 25 de agosto de 61, não chegou a ser examinada pelo Congresso. Considerou-se dispensável a aprovação do ato presidencial pelo Legislativo. Seu sucessor legítimo, vice-presidente João Goulart, encontrava-se em viagem pela China. Assumiu, então, o supremo posto nacional, Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Logo passou a circular o boato de que João Goulart fora vetado pelos ministros militares porque esses não viam com bons olhos a ascensão à Presidência da República de um socialista que, desde seus tempos de ministro do Trabalho, defendia ideias de uma República Sindicalista.
No Rio Grande, tal tentativa de golpe militar encontraria fortíssima reação por parte do então governador do estado, Leonel Brizola, que, além de companheiro político de Jango, era seu cunhado.
Assumindo ostensivamente a reação às articulações de caserna, Brizola viria implantar um dos movimentos políticos mais expressivos na história política do país, conhecido como Episódio da Legalidade.
Uma ideia bem nítida do clima emocional daquela hora está neste curioso depoimento de uma jovem que jamais imaginaria que suas palavras viessem, algum dia, constituir-se depoimento histórico.
Num exemplar de O ermitão da Glória, de José de Alencar, volume hoje pertencente à Biblioteca Pública do Estado, Cleci Meneghel, a jovem a que nos referimos, deixou registrado, na última página em branco:
Hoje é dia 30.8.61.
Faz, hoje, cinco dias que o Brasil, Rio Grande do Sul, Santa Rosa vivem momentos de angústia com a ameaça da ditadura no Brasil. Por força, bravura, coragem do governador Leonel Brizola é que ainda não estamos sob o regime ditador; o Rio Grande do Sul está em pé pelo Brasil. Se não fosse pelos bravos rio-grandenses, onde pulsa um coração gaúcho, em cujas veias corre o sangue Farroupilha, estaríamos já sob o poder dos golpistas, etc. etc. etc.
- Golpe da direita, dizia-se, com apoio das Forças Armadas.
- Interferência, sem disfarce, do Embaixador norte-americano, Lincoln Gordon, acrescentava-se.
- Preocupações das Forças Armadas com os rumos políticos de Jânio Quadros, que hostilizava frontalmente os Estados Unidos, manobrando em direção aos socialistas. E a gota d’água desta situação estaria contida no gesto de Jânio Quadros, ao condecorar Che Guevara.
Afirmava-se que ele pretendia passar um golpe à Nação: fazendo-se de vítima daquelas supostas forças ocultas, intentara renunciar para retornar ao poder nos braços do povo, capaz assim de enfrentar a gregos e troianos.
Sua carta de renúncia, assinada a 25 de agosto de 61, não chegou a ser examinada pelo Congresso. Considerou-se dispensável a aprovação do ato presidencial pelo Legislativo. Seu sucessor legítimo, vice-presidente João Goulart, encontrava-se em viagem pela China. Assumiu, então, o supremo posto nacional, Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Logo passou a circular o boato de que João Goulart fora vetado pelos ministros militares porque esses não viam com bons olhos a ascensão à Presidência da República de um socialista que, desde seus tempos de ministro do Trabalho, defendia ideias de uma República Sindicalista.
No Rio Grande, tal tentativa de golpe militar encontraria fortíssima reação por parte do então governador do estado, Leonel Brizola, que, além de companheiro político de Jango, era seu cunhado.
Assumindo ostensivamente a reação às articulações de caserna, Brizola viria implantar um dos movimentos políticos mais expressivos na história política do país, conhecido como Episódio da Legalidade.
Uma ideia bem nítida do clima emocional daquela hora está neste curioso depoimento de uma jovem que jamais imaginaria que suas palavras viessem, algum dia, constituir-se depoimento histórico.
Num exemplar de O ermitão da Glória, de José de Alencar, volume hoje pertencente à Biblioteca Pública do Estado, Cleci Meneghel, a jovem a que nos referimos, deixou registrado, na última página em branco:
Hoje é dia 30.8.61.
Faz, hoje, cinco dias que o Brasil, Rio Grande do Sul, Santa Rosa vivem momentos de angústia com a ameaça da ditadura no Brasil. Por força, bravura, coragem do governador Leonel Brizola é que ainda não estamos sob o regime ditador; o Rio Grande do Sul está em pé pelo Brasil. Se não fosse pelos bravos rio-grandenses, onde pulsa um coração gaúcho, em cujas veias corre o sangue Farroupilha, estaríamos já sob o poder dos golpistas, etc. etc. etc.
Cleci Meneghel
Transcorridos apenas trinta anos, aqueles acontecimentos ainda estão bem vivos na memória do povo. Leonel Brizola lançou-se destemerosamente à luta pelo respeito à Constituição, asseguradora da posse de Jango. Debalde apelou para o civismo dos chefes militares, do Norte ao Sul do País. Constrangidos pela situação de golpe, que a bravura do governador gaúcho estava a denunciar, terminaram por evitar qualquer entendimento com o defensor da Legalidade. Até o general José Machado Lopes, comandante do III Exército, com sede no foco dos acontecimentos, instado por Leonel Brizola a manifestar-se, resguardou-se – a princípio – numa situação indefinida. Abandonado, assim, pelas Forças Armadas, e contando apenas com a tradicional fidelidade da Brigada Militar do estado, além do povo que acorria ao Palácio, o governador gaúcho conseguiu mobilizar o Rio Grande. Requisitou as emissoras de rádio, das quais uma com ele permaneceu, a Rádio Guaíba, a custa da qual venceria sua grande luta. Eloquente e persuasivo, batendo-se por uma causa cujo mérito estava acima de qualquer contestação, naquele instante, ele sintetizava o brio de nosso povo. Era um Farroupilha, como retratou a jovem do curioso depoimento acima transcrito.
À medida que as horas transcorriam, avolumava-se a legião dos voluntários inscritos para a luta. O Hino da Legalidade trazia à população constante exaltação cívica. Também fui dos que se inscreveram.
A propósito, esta confissão: contemporâneo e professor de Leonel Brizola, na Escola Técnica de Agricultura de Viamão, conhecendo muito bem seu caráter e descortino, tinha razões de sobra para nele confiar. Desse modo, coloquei meu CandangoAlcy Cheuiche. Esperamos a hora de nos armarmos e pôr as rodas na estrada...
Entrementes, Jango tratava de negociar sua posse, a esta altura já apoiada pelas Forças Armadas do Sul e pela Cadeia Radiofônica da Legalidade, que se montara no Rio Grande.
Após a decisão do general Machado Lopes, Brizola entregou-lhe o comando da Brigada Militar.
Correram notícias que o Exército Nacional se preparava para atacar nosso estado. O Rio Grande, mobilizado, estava pronto para a luta, que só não aconteceu porque o presidente João Goulart seria, enfim, empossado.
Hábil, cauteloso, tendo inclusive negociado a adoção do Parlamentarismo, com que sua autoridade se enfraqueceria, criando uma expectativa, de certo modo de alívio às Forças Armadas, o presidente protelava sua investidura. E o povo sentiu tal atmosfera.
É ainda a jovem do depoimento anterior que manifesta a preocupação do povo – e a sua – em palavras grafadas na última contracapa:
Hoje, dia 4.9.61 – ontem, as tropas do III Exército, daqui, seguiram viagem à luta. Amanhã o Sr. João Goulart irá a Brasília assumir a Presidência da República. Talvez, por interesses que são óbvios à minha pessoa, o Jango já devia ter ido. Mas... não foi até a presente data.
Do livro Nós e a Legalidade: depoimentos (IEL/AGE, 1991)