24.3.11

Meu querido Carlinhos

Liana Timm assina o design e capas dos quatro volumes
        Em 2002, o IEL publicou, em quatro volumes, Teatro reunido, de Carlos Carvalho. No volume 1, estão as peças que nunca foram encenadas; os textos infantis foram reunidos no segundo; e os volumes 3 e 4 incluem as peças cujas datas da primeira montagem estão registradas no fascículo da Coleção Autores Gaúchos dedicado ao autor. Leia aqui o prefácio da obra, escrito pelo diretor teatral, dramaturgo, ator, poeta e historiador Luiz Paulo Vasconcelos.
 


Garopaba, 9 de fevereiro de 2002

Meu querido Carlinhos

A Cíntia Moscovich convidou-me a escrever uma apresentação para a edição de tuas peças, que o IEL em boa hora publica. Conhecendo como te conheci, temi o que poderias vir puxar-me, caso dissesse não. Assim, pois, aceitei.     


          Afinal, juntos, compartilhamos bons e maus momentos de lazer e de trabalho, mais aqueles do que estes, felizmente. Juntos, forjamos uma convivência que se estendeu do humor escatológico de que tanto gostavas à disciplina espartana que a escritura de uma peça e a direção de um espetáculo exigem. Juntos, comemos e bebemos tudo o que merecíamos. Juntos, finalmente, combatemos uma ditadura e construímos uma utopia, a de um teatro possível fora dos cânones colonizadores do eixo cultural do país, distante dos modelos comerciais que a mídia e o consumo já naquele tempo impunham. Um teatro de arte, de conteúdo, de denúncia, inteligente, investigativo, ético, combatente, responsável. Lembras?

Hoje, passados quase vinte anos de tua morte, fico pensando no que deram nossos sonhos, nossas crenças, nossas fantasias. A ditadura, pelo menos a militar, esta conseguimos enterrar, espero que para sempre. A utopia, bem, como já naquela época intuíamos, a utopia tem seus altos e baixos, além de um certo quê de utópico.

No período em que atuamos, trinta anos atrás, o teatro gaúcho vivia uma fase, digamos assim, adolescente, de afirmação, de qualificação, em que grupos semi-profissionais começavam a desenhar uma proposta estética séria e consequente para o teatro porto-alegrense. Lembras? Maria Helena, Irene, Gerd, Lygia, Luiz Arthur, Sandra, Araci, Sérgio, Luciano, Jairo, tu e eu, lembras? Quase não havia patrocínios, as salas destinadas à produção local eram três ou quatro, as temporadas não ultrapassavam um mês, um mês e meio. Mas, por outro lado, havia um certo orgulho coletivo pelo que fazíamos e, principalmente, havia o nosso trabalho suicidamente empenhado na defesa do teatro como arte.

O que vinha a ser isso, verdade seja dita, nem nós sabíamos direito. De qualquer maneira, continuávamos lendo Artaud, praticando Brecht, tentando Grotowsky, imitando o Living, admirando Lavelli, Zé Celso, Bob Wilson, discutindo Tropicalismo, Cinema Novo, Nouvelle Vague, Crueldade, Absurdo, Pop Art, Nouveau Roman, Dodecafonismo e de quebra a Nouvelle Cuisine. Sabíamos que não estávamos satisfeitos com padrões estéticos acomodados e por isso mesmo nos empenhávamos na busca de linguagens que reafirmassem nossa crença e nossa fé na arte como um instrumento de transformação.

Hoje, se tivesse que resumir os ganhos e perdas ocorridos de lá para cá, diria que os ganhos ficam por conta do processo de profissionalização, hoje uma realidade visível, palpável. Uma produção local, Carlinhos, hoje, não fica menos de um ano em cartaz, sendo que algumas fazem malabarismos e permanecem atuantes quatro, cinco, seis anos. As possibilidades de excursão pelo resto do país têm aumentado muito, as fontes financiadoras, tanto estatais quanto privadas, se multiplicaram e o número de produções já ultrapassa o nosso prognóstico mais otimista. Em suma, a produção aumentou seu poder de fogo, lastro e fôlego. Mas há perdas. Que ficam por conta de um certo amortecimento da capacidade de transgressão do artista e do consequente enfraquecimento da dose de risco na criação da obra de arte.

Tu perguntarias, possivelmente – mas então, demos com os burros n’água? Não sei, meu caro, não sei. A publicação de tuas peças pelo IEL é sinal de que ainda há vida inteligente do lado de cá. Afinal, sabemos todos que é preservando a memória que se constroi a cultura. Tuas peças, quando encenadas, foram referenciais importantes, instrumentos valiosos para uma avaliação lúcida do momento que vivíamos. E teu pensamento, subjacente à tua literatura ou resgatado das poucas entrevistas e palestras que deste por esse Rio Grande do Sul afora, pode ainda hoje reanimar tanto o que há de pujante quanto o que há de enfadonho no nosso teatro.

Lembro de um Ciclo de Debates sobre a Realidade Brasileira, em Santa Maria, em que, enfático, declaraste: O escritor brasileiro não pode mais se dar ao luxo de chorar a miséria de um indivíduo em cinquenta páginas; é preciso ir às causas, às raízes dessa miséria. O escritor brasileiro não pode mais se dedicar a ser um mero aparelho sensitivo, mas deve pressentir e aprender toda a nossa realidade, como também descobrir suas origens. Por isso, o escritor brasileiro, e o artista em geral, deve lançar mão de outros campos do conhecimento, como a sociologia, a economia e a política, para exercer o seu verdadeiro papel, que é o de testemunha e denunciante de sua época. Pois é. E daquela entrevista à Folha da Manhã – lembras? – em que arrasaste dizendo: Alguns exigem da literatura não apenas participação, ou comprometimento, mas também soluções. Particularmente, não creio que seja próprio da literatura apontar soluções. A sua grande contribuição está em denunciar toda uma problemática destruidora do homem. E é com esse homem, a um nível social, ainda que exposto, muitas vezes, como figura individual, que ela tem compromisso. Aliás, creio que esta é a função de todo e qualquer artista: relatar, denunciar, remexer no lixo, por o dedo na ferida, ainda que com o perigo de infecção. A não ser assim, o artista estará condenado ao papel de bobo da corte, consolando os aflitos e divertindo os poderosos.

Meu caro, já está tarde, a Cíntia pediu para não me estender muito e, como tu bem podes ver, eu ainda não apresentei coisa alguma. Ou será que apresentei? Não importa. O que de fato conta neste livro são tuas peças. De que eu tanto gostava. E gosto, ainda. Com a ajuda delas, vencemos a batalha da ditadura. Por que não alcançaremos um dia nossa utopia?

Do teu amigo de sempre,

LUIZ PAULO VASCONCELOS

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