Trechos da entrevista com o escritor para o volume Donaldo Schüler (1999), da série Autores Gaúchos, do IEL.
A Grécia veio primeiro. Nunca tive intenção de ser escritor. Vi que na Grécia nada estava pronto. É por isso que se escreveu tanto sobre a Grécia, ou a partir da Grécia. Quem pensa sobre a Grécia começa a escrever, começo que não tem fim.
Regina Zilberman – Como se deu tua formação literária?
Donaldo Schüler – Estou tentando entender a pergunta. Não é que ela não seja clara. Feita a outro, eu não estranharia nada. Feita a mim, tento saber o que ela tem a ver comigo. Fala-se na formação da literatura brasileira, por exemplo. É o que me ocorre. Penso no “se deu”. Isso me lembra dádiva. Formação é o que recebemos, ou o é o que fazemos com o que recebemos? Inquieta-me “literária”. Literatura é o que se lê? Ou é também o que se ouve, o que se vê, o que sentimos? Não há nada que não reelaboramos com as palavras. O que não é literatura na origem torna-se literatura em nossas divagações. Se devo falar sobre minha formação, faço literatura. Já refleti sobre a formação dos meus alunos. (...) Nunca pensei na minha própria formação. As coisas foram acontecendo. Uma provocava a outra.
Zilberman – Como é que isso começou?
Schüler – Creio que lendo. Isso na adolescência. Como vês, comecei tarde. Não creio que tenha lido alguma coisa na minha infância por gosto. Fora do que a escola impunha, não recordo que tenha me ocupado com livros. Lembro-me de raros espetáculos de circo. Filmes de “Gordo e Magro”, faroeste. Meu pai ouvia rádio, lia e discutia notícias de jornal, madrasta e tia discutiam folhetim. Colegas devoravam histórias em quadrinhos. Meu universo infantil se reduzia a isso. Nada de muito empolgante. Não creio que alguém tenha estado seriamente interessado em minha formação. Eu devia reproduzir o molde familiar e comunitário cujo valor ninguém contestava. Não convivi com reformistas. As pessoas estavam contentes com as coisas como estavam. Por que pensar em formação?
Zilberman – Como e em que condições te transferiste para Porto Alegre?
Schüler – O que te falei passou perto de Porto Alegre. Em parte. Estou dividido entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Passei parte de minha infância em Estância Velha. Nunca vivi tão longe da Capital. Não sonhava com Porto Alegre. As pessoas das minhas relações falavam com orgulho de São Leopoldo. Minha experiência de vida era só distrital. As coisas vinham de fora para dentro. Ninguém tinha viajado mais do que meu pai. Ele conhecia o Rio Grande do Sul todinho. Tivemos longas conversas. Falava-me do que tinha vivido e visto. Era bom conhecedor da história familiar desde os imigrantes, os antepassados dele e os de minha mãe.
Zilberman – E Porto Alegre?
Schüler – Como vês, eu já estava em Porto Alegre, antes de chegar. Eu estava, não estando. Porto Alegre era meu horizonte distante. Em Porto Alegre comecei a ler. Havia bibliotecas e horas de lazer. E havia colegas que liam. Descobri Machado de Assis lá pelos quinze anos. Li José de Alencar, Bíblia, Goethe, Schiller... Aulas de retórica. Discursos no Grêmio Literário, ouvidos e proferidos. Leitor e redator de revista escolar. Cinema e teatro. Havia clima para isso. Não havia assunto que não fosse matéria de discussão. Discutia-se pelo prazer de discutir. Havia discussões tão apaixonantes quanto as partidas de futebol. Discutíamos pelo prazer de discutir. Foi aí que aprendi a brincar com idéias.
Zilberman – Um escritor que encontrou na cultura grega...
Schüler – A Grécia veio primeiro. Nunca tive intenção de ser escritor. Vi que na Grécia nada estava pronto. É por isso que se escreveu tanto sobre a Grécia, ou a partir da Grécia. Quem pensa sobre a Grécia começa a escrever, começo que não tem fim. Imaginar quando se entra na Grécia é inevitável. E como nada está pronto, cada um inventa a sua.
Zilberman - És um helenista que faz ficção sobre o Rio Grande do Sul?
Schüler – Helênicos somos todos. A Grécia é responsável por nossas inquietações. Quando queremos inovar, mesmo no revolucionário século XX, caímos na Grécia. Na Grécia aconteceu a explosão do universo cultural em que vivemos. O Rio Grande do Sul foi o meu universo imediato. Vivi num período em que se refletiu muito sobre o Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul me fascinou por me ser estranho. Movimento-me entre esses dois horizontes. A Grécia é o meu horizonte geográfica e cronologicamente distante. Vê que nesses dois horizontes cabe tudo.
Zilberman – Como te sentes nessa bipolaridade?
Schüler – Produtivo e inquieto. O leque é muito amplo. Estou sempre fora de lugar. Quer dizer, em formação. Vê bem, isso não foi eleição. É assim, porque “se deu” assim. Por que, não sei, nem para quê. Não é que não saiba inventar uma resposta. A ficção nos obriga a inventar sempre. Fujo de estereótipos, por exemplo, o estereótipo da formação integral. Os que a buscaram, nunca a alcançaram. Formação integral podemos encontrar numa estátua de pedra, nunca em pessoas de carne e osso lançadas num determinado tempo histórico. Tempo e espaço circunscrevem nossos limites.