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1. O poeta Orestes Francisco de
Oliveira faleceu aos
nove dias do mês de setembro de 1965, de causa
desconhecida.
Morreu dormindo, disseram seus
familiares.
2. No dia sete de setembro de 1965,
estávamos – um
punhado de gurias e guris nervosos, de onze e doze
anos
– no altar da Pátria, para receber as medalhas que tínhamos
conquistado nos grandes concursos lítero-históricos
da cidade:
Duque de Caxias, Tiradentes e Batalha Naval do
Riachuelo. Era uma
tarde nublada, cinzenta mesmo.
Dentre os agraciados, eu era o mais
ansioso porque receberia duas medalhas: ouro por
Caxias e bronze por Tiradentes.
De repente, discretamente, uma
senhora da organização abaixou-se para mim e sussurrou:
– Alguém que tu amas muito vai
te entregar os prêmios, meu querido.
Mistério!
Bem, naquela época, eu amava três
pessoas – meu
pai, minha mãe e meu avô paterno.
O altar da Pátria – erguido
entre as altas árvores da
praça, no lado que dá para a Avenida –
consistia em um
palco elevado coberto por um telhado de chapas de
zinco.
O que mais me intrigava naquele
palanque era o fogo
sagrado. Colocado em cima de um aparador, havia
um estranho objeto de ferro - parecia um balde - do qual se desprendia permanentemente uma pequena chama. Ele estava um pouco afastado da grade da frente do altar, de modo
que
os debochados não pudessem acender seus cigarros
ali.
Nós, a piazada, estávamos bem na
frente de modo a
sermos vistos por todos. Éramos o exemplo a ser
seguido:
a juventude estudiosa, o futuro sorridente do Brasil.
Às cinco e meia, o presidente da
Liga de Defesa Nacional, o professor Nhambiquara de Souza, foi ao
microfone e disse assim:
– E agora, antes de darmos início
à cerimônia de premiação dos vencedores dos concursos
lítero-históricos,
ouviremos um poema laudatório da lavra do
consagrado
vate Orestes Francisco de Oliveira.
Homem alto e magro, o poeta era
quase inteiramente calvo. Como seus raros fios de cabelo estavam
concentrados numa estreita faixa lateral, as grandes orelhas de abano
assumiam um papel destacado na cabeça brilhante. O
rosto, fino e
comprido, tinha seu centro determinado por
um poderoso nariz de
vastas narinas. Seus longos braços
terminavam em punhos grossos,
mãos imensas e dedos
fortes.
Orestes Francisco de Oliveira era
muito respeitado
na cidade: todo domingo publicava um poema no
Diário.
Sob palmas, o poeta laureado –
ganhador do concurso de poemas do bicentenário da cidade –
dirigiu-se ao microfone.
Era um homem de bruscos movimentos
faciais. Testa, sobrancelhas, olhos, bochechas, nariz e boca
pareciam
mover-se independentemente da vontade dele, como se, o
tempo todo, o pobre estivesse recebendo pequenas descargas elétricas
no rosto.
O poeta levou a mão direita ao
bolso interno do paletó. De lá retirou a folha, dobrada em quatro,
na qual datilografara o poema.
Começou, então, um estranho bailado.
A folha escapou dos dedos dele. Ao
se vergar para
pegá-la, o coitado enfiou a testa no microfone. O
pedestal
que sustentava o microfone, por sua vez, inclinou-se para
frente e começou a despencar. O poeta levou a mão direita
à
frente para segurar o pedestal, mas só conseguiu empurrá-lo.
Tensas e preocupadas, as pessoas
que estavam sobre o palanque e também os homens mais altos da
plateia
pressentiram um desastre. Ergueu-se no ar um sussurro
de
espanto. Mas também, devo admitir, explodiram umas
risadas. Risadas debochadas, claro.
O microfone caiu dentro do fogo
sagrado.
Rápido como um raio, o poeta meteu
as mãos no meio
das brasas e resgatou o microfone. Depois, pôs-se
a soprar
a ponta dos dedos chamuscados.
As risadas passaram a gargalhadas.
Recolocado o microfone no pedestal,
o professor
Nhambiquara murmurou:
– Um, dois, três, testando, um,
dois, três, testando.
Felizmente, o microfone continuava
funcionando.
– Vamos em frente! – sorriu o
professor.
Refeito, Orestes Francisco de
Oliveira, mais uma vez, alinhou-se diante do microfone já empunhando
a folha na
qual datilografara o poema.
Ao fixar os olhos no papel, o poeta
percebeu que não
conseguiria ler o que ali estava escrito sem a
ajuda dos
óculos. Desatento como todos os artistas, esquecera de
datilografar em maiúsculas, coisa que fazia sempre que pretendia
declamar em público.
Com movimentos muitos rápidos, ele
apalpou-se com
a mão esquerda. Bateu nos bolsos laterais do paletó
e no
bolsinho superior. Nada. Na mão direita erguida, ele
continuava a sustentar o poema.
Notei um certo alívio naquele
rosto angustiado quando o poeta localizou os óculos no bolso
traseiro direito da
calça.
Teve início, a seguir, a
intrincada operação de resgate dos óculos. Orestes Francisco de
Oliveira, que não era
um homem prático, não teve a ideia óbvia:
passar o poema
para a mão esquerda e usar a direita para pegar os
óculos.
Não, ele tentou apanhar os óculos com a esquerda,
mantendo a direita à frente, com o poema desfraldado.
Os risos cretinos renasceram.
Era dramática a luta do poeta
contra o botão da calça.
Acontece que ele não tinha o
perfeito controle dos
dedos da mão esquerda, que havia fraturado,
anos antes,
ao cair numa escadaria íngreme.
Reconheço que o poeta fazia gestos
estranhos. Admito até que fossem um tanto cômicos.
Uma gaitada uníssona tomou conta
do público.
O pessoal que estava no palco
tentava abafar o riso.
Afinal, ali era o altar da Pátria. Mas
o povo da plateia ria
que se esbaldava. A cidade inteira, ali
reunida para festejar
a independência, gargalhava. As pessoas riam
não do poeta, que Deus os livre, riam do homem desengonçado.
Então, para pôr um fim àquela
situação, o poeta jogou
para o alto o poema. A folha subiu no ar
úmido e ele, muito
rapidamente, pode levar a mão direita ao bolso
traseiro.
Abriu o botão e apanhou os óculos,
mas percebeu que o
poema começava a despencar, perigosamente, em
direção
ao fogo sagrado. Como era um dono de péssima memória,
incapaz de decorar frases de três palavras, precisava salvar aqueles
versos a qualquer preço.
Decidiu voar em direção ao poema.
Logo seu corpo
magro estendeu-se no ar, como o de uma saracura
atravessando um banhado. Conseguiu apanhar a folha antes
que ela
chegasse às chamas, mas não pode controlar o final do voo, ou seja,
a aterrissagem. Entrou de cabeça no
receptáculo em que ardia o
fogo sagrado. O balde de ferro
desprendeu-se de sua base e rolou –
espalhando fagulhas e
brasas – em direção à beira do palco.
As pessoas que estavam no gargarejo
iniciaram um
súbito movimento de recuo. Alguns dos que estavam um
pouco mais atrás caíram, e logo foram pisoteados pelos que
retrocediam. Perdi de vista meus pais no meio da massa.
Instalou-se o caos. Da multidão
veio, primeiro, um
rugido de mar furioso. Depois, comecei a
discernir os
gritos de espanto dos berros de horror, as
pragas dos
xingamentos.
As altas autoridades – prefeito,
juiz, promotor e diretora regional de ensino – avançaram para a
beira do palco,
torcendo para que tudo aquilo não passasse de um
grande
susto, sem mortos e feridos.
Deixando o cercado de fitas coloridas
em que nos encontrávamos sitiados – nós, as crianças-prodígio
–, corri
para o poeta, que, deitado no chão, zonzo, segurava na
mão
o seu poema.
– O ridículo mata – disse-me
ele, antes de desmaiar.
Não houve entrega de medalhas
naquele dia.
3. Na sua edição de nove de
setembro, dia da morte do poeta, o Diário publicou a seguinte
nota:
Como é do conhecimento geral,
devido a um pequeno incidente, o poema dedicado à nossa cidade, pelo
transcurso da data magna da Pátria, não pôde ser lido naquela
ocasião pelo conceituado aedo Orestes Franci
sco de Oliveira. Assim,
nós o publicamos hoje para que a cidadania sul-taperense possa
usufruí-lo na íntegra.
Brava e heroica Tapera do Sul
Mil musas seriam necessárias
Para que eu, pobre vate inútil,
Pudesse engendrar bravas árias
Cantando teu caráter inconsútil.
Sagrado berço de povo ordeiro,
Tu, formosa cidade de Tapera,
És do extremado Sul o luzeiro,
De toda a terra a mais sincera.
Princesa, dedico a ti estes versos
Humildes, vagos, pobres, toscos,
porém que
Gravam teu nome no vasto universo.
Tapera adorada, berço de heróis,
Na dura altivez dos meus poemas
Fulgura a chama de teus arrebóis.
4. Em janeiro de 2005, tive a
oportunidade – por motivo que não declinarei – de passar uma
semana na casa
em que nasceu, viveu e morreu o poeta Orestes
Francisco
de Oliveira, na cidade de Tapera do Sul. Pude então reler
os
dois livros que publicou em vida: O Fascinante Cintilo das
Pérolas Negras e O Fabuloso Brilho das Estrelas Cadentes.
Certo
dia, escarafunchando no escritório do poeta,
descobri um fundo
falso em uma das gavetas de sua escrivaninha. Lá dentro havia um
caderno de poemas. O último deles havia sido escrito na noite de
sete de setembro de
1965.
5. Lia-se na folha de rosto do
caderno:
Este bem inservível pertence ao
cidadão Orestes
Francisco de Oliveira, falsa identidade de um poeta
que
se chamou, de início, orestesXicoliveira e, depois,
simplesmente, oXo. Mais que um nome, oXo é um olhar, uma
radiografia. Abjeto, como os demais integrantes da chamada
humanidade, oXo é um ser ínfimo e ridículo, perdido numa
cidade
de merda, localizada entre Nada e Coisa Nenhuma,
onde se vive como
ovelha, balindo, e se morre como burro,
zurrando. Este caderno
destina-se, pois, à invisibilidade e
ao esquecimento. Mas se, por
acaso, vier a ser encontrado,
pedimos a seu descobridor que não o
leve à luz. Aqui estão
reunidos apenas desabafos pueris de um
idiota. Há palavras demais no mundo.
6. Primeiro detalhe: os poemas
escritos por oXo eram
de forte conteúdo erótico (pornográficos,
na verdade), de
crítica à religiosidade (inequivocamente
blasfemos), de
ataque às instituições políticas (furiosamente
anarquistas) e de fundo desprezo pelos seres humanos, que, em
mais
de uma ocasião, o poeta chama de “meros produtores
de bosta”.
7. Contrariando em parte o desejo
expresso por oXo,
transcreverei aqui o poema escrito por ele na
noite de sete de setembro de 1965.
O derradeiro ridículo
O meu primeiro eu é um magano,
Astro do fingimento, um poetastro,
Que se alimenta de farsa e engano,
Um bobo do burgo, um mago do logro.
Palhaço, perante bovina multidão,
Ignara, formada por viventes
broncos
(Humanos são ainda menos que
troncos),
Padeceu pungente dor e humilhação.
Como não há heróis de couraça,
E como aqui só viceja o nada,
Fumaça, tramas vazias e trapaça,
Caiu preso na sua própria cilada.
Aquela sua única plateia
Desejava, cega, covarde, molenga,
Saber-se invencível na peleia,
Ainda que numa récita capenga.
Sois os mais bravos entre os rudes,
Dir-lhes-ia o poeta naquela vez
Com impiedosa insinceridade.
Mas, ante o ridículo arremate,
Partiu-se a mola que impelia
Aquele falso eu, o primeiro vate.
Encarando o espelho aziago,
Sobrou-me apenas meu segundo eu,
Irado poeta do espaço largo.
Cantador do deserto cotidiano,
Amante frio do sexo sem amor,
Fanático profeta do de(u)s)engano.
Rebento do absurdo e do acaso,
A vida é uma cavalgada sôfrega
de machos e fêmeas, nua refrega.
Qual dos dois poetas simplórios
– Eu não saberia julgar e
condenar –
Foi mais precário, provisório?
8. Segundo detalhe: o poeta oXo,
Orestes Francisco
de Oliveira, era meu avô. Por parte de
pai.
Do livro Exercícios espirituais para insônia e incerteza (IEL / Corag, 2012)