21.2.11

SCLIAR E A ESCRITA DE UM HOMEM SÓ


Foto da capa: Beto Scliar
  
Trechos da entrevista com o escritor para o volume Moacyr  Scliar – A escrita de um homem só (2006), da série Autores Gaúchos, do IEL.  

Trabalhei muitos anos em saúde pública e, para mim, livro é igual a vacina. Assim como devo levar a vacina para a população, tenho também que levar livro. 



Como definirias tua literatura, tão eclética e variada em gênero e personagens?
Houve uma época em que cabia um rótulo. Quando comecei, meus contos faziam o gênero fantástico – era o realismo mágico, uma influência de García Márquez, Júlio Cortázar e outros escritores. No meu caso, também de Kafka. Então, minhas primeiras histórias eram fantásticas e também meus primeiros romances. Depois, durante algum tempo, foi muito forte a influência do judaísmo. Mais tarde, abordei outros temas como medicina, saúde, personagens médicos. Hoje, realmente, acho que sou eclético, não consigo me classificar numa ou outra coisa. Do ponto de vista, digamos, de crítica  e mesmo de público, um rótulo aparentemente torna tudo mais fácil.  Mas não fiquei preso a rótulos, fui fazendo o que achava que tinha de fazer.
Um escritor inventa seu próprio estilo?
Não tenho dúvidas de que tu não decides como vais escrever. Tu escreves como tu és. A pessoa que tu és vai se revelar na maneira de escrever. Eu não fiz nenhuma opção, além de, evidentemente, escrever o melhor possível, trabalhar muito o meu texto e não fazer concessões. (...)
Quando começas a escrever um livro, enredo e personagens já estão estabelecidos?
Não, vão nascendo à medida que evolui a história. Já comecei uma história, por exemplo, em que uma família era composta de pai, mãe, filho e filha. Depois de cem páginas, me dei conta que o filho não aparecia. Então, era uma família de três pessoas, não de quatro, e o filho foi sacrificado. Eu não faço realmente esse tipo de planificação. Sei que muitos escritores fazem até esquemas, planejam capítulos e o que vai acontecer em cada um. Não é o meu caso. Isso dá mais trabalho, mas também dá mais liberdade de criação.
Originariamente, sou contista, escrevia narrativas curtas, aliás muito curtas, de uma página ou duas. Quando comecei a escrever coisas mais longas, na verdade o que eu estava fazendo era estabelecer sequências de narrativas. Eu não pensava num romance como um todo. Eu pensava num romance como uma sequência de coisas que vão acontecendo. Mas eu não sou o único, a literatura inglesa está cheia desse modelo narrativo, que é uma sequência de histórias. (...)
No teu entender, qual a forma literária mais perfeita?
É o conto. Primeiro porque é curto, não permite erros, segundo porque ele corresponde a uma disposição mais autêntica do ser humano. O ser humano é um contador de histórias, mas não é um contador de romances. Então, não tenho dúvidas que o conto fala direto – de um lado, à natureza humana e, de outro, ao desejo da perfeição literária. A segunda é a poesia. Ela está muito mais perto do conto que o romance. (...)
Tens saudades dos personagens quando terminas um livro?
Não. Como dizia Hemingway, livro terminado é como um leão morto. Ele era caçador, sabia muito bem do que estava falando. A fera está ali, tu lutas com ela, matas a fera e ela está morta. Eu tenho essa mesma sensação, inclusive não releio meus livros. Reler, depois de publicado, é sempre para mim uma coisa penosa. Sempre. (...)
E falar sobre os livros é fácil?
É fácil. Dou muitas palestras, converso com muitos alunos, mas não acho que isto seja uma tarefa literária. Não faz parte do ofício de escrever. Se um escritor diz que tudo que tem para dizer está nos seus livros, eu respeito. Agora não posso me esquecer que vivo no Brasil, um país em que as pessoas têm pouco acesso à informação, uma cultura que tem dificuldade de entender o texto escrito e que precisa ser motivada para isso. Por outro lado, trabalhei muitos anos em saúde pública e, para mim, livro é igual a vacina. Assim como devo levar a vacina para a população, tenho também que levar livro. É bom estar com gente jovem, estar com professores. Mas são duas vidas separadas: uma é a vida na frente do computador, outra é a vida na frente do público. E, claro, há momentos mais desafiadores, quando se fala para professores de literatura, mas em geral gosto de falar. No começo, tinha certa dificuldade, mas, aos poucos, fui desenvolvendo uma capacidade de empatia com auditórios, pessoas, o que facilita muito a minha tarefa. (...)
Como trabalhar a potencialidade do público leitor no Brasil?
Dois momentos são decisivos. Um é o da casa, quando o leitor ainda é uma criança: pais que lêem, que têm livros em casa, pais que lêem para seus filhos pequenos, que levam as crianças na Feira do Livro e a livrarias, estão ajudando a formar leitores. O que eu vejo hoje com muito entusiasmo, muito entusiasmo mesmo, é o trabalho que se faz nas escolas. Já percorri muitas escolas e é comovente ver professores, que ganham pouco, que mal têm tempo para ler, que não têm dinheiro para comprar um livro, mas são absolutamente dedicados e criativos. Acho que a escola brasileira fez uma coisa importante: mudou aquele modelo antigo, segundo o qual escritor bom é escritor morto, e começou a trabalhar autores contemporâneos, com muita inteligência e criatividade, baseando-se no princípio de que leitura não é uma obrigação curricular, uma coisa que o aluno precisa fazer para passar nas provas ou no vestibular. Leitura é um prazer, uma fonte de emoção.