ADQUIRA ESTE LIVRO |
Se fosse preciso formar
uma seleção brasileira de contistas – para participar, por
exemplo, de um congresso internacional de bruxaria e temas afins –,
o nome de Lourenço
Cazarré não poderia ficar fora da lista, ao
lado de outros dois
gaúchos (Aldyr Garcia Schlee e Renato
Modernell) e três paranaenses (Dalton Trevisan, Domingos Pellegrini
e Miguel
Sanches Neto). É um time excessivamente sulino, dirá
alguém, reivindicando pelo menos uma vaga para um paulista,
um
carioca e um mineiro – os mimosos da mídia.
Como a seleção é
minha, abro uma vaga para o mineiro Luiz Vilela, que vive em sua
terra natal, Ituiutaba.
Outra para a carioca Fernanda Young e mais
uma para a
gaúcha Cláudia Tajes, para que não aleguem
discriminação às novas gerações. Agora, se o time incluísse
contistas
mortos, teríamos de arranjar lugar para o goiano J. J.
Veiga
(1915–1999), a paulista Dinorath do Valle (1926–2004) e os gaúchos João Simões
Lopes Neto (1865–1916) e Darcy
Azambuja (1903–1970).
Sei que há por aí
outros nomes, mas este texto não
pretende fazer um balanço da
narrativa curta entre nós. O
que estou querendo é situar o leitor
desavisado no nosso
firmamento literário antes de lhe apresentar o
autor deste
livro. Ora, direis, apresentar veterano é chover no
molhado; as estrelas das nossas letras dispensam tais expedientes.
Pois lhes digo que nesse gênero de prosa, a resenha,
sempre se pode
agregar alguma novidade. Avante, pois.
Quando ele estreou na
literatura, há 30 anos, imaginei que Lourenço Cazarré era um nome
inventado. Muito
bem inventado, aliás. Um dia, muito tempo depois,
mas
ainda na década de 1980, houve um encontro de ex–alunos
de
jornalismo da Universidade Católica de Pelotas. No final
da reunião
um colega me chamou de lado e me apresentou
um cara meio carrancudo,
desses que ficam te encarando em silêncio, como os
atletas de judô ou os goleiros de futsal: “Este é o Lourenço
Cazarré...”.
O cara não podia ser
mais real. Tinha uns olhos muito perspicazes. Por trás da barba
espessa, já caminhando
para o grisalho, parecia um falcão –
maltês, por que não?
– a observar as possíveis presas se
movendo no ambiente.
Na minha imaginação,
alimentada por dois ou três encontros fortuitos com Dalton Trevisan
em 1970 na Boca Maldita, em Curitiba, todo contista seria uma espécie
de ave-de-rapina sempre pronta a pegar as histórias no ar, para
azar de suas vítimas.
Sem fazer tipo, Lourenço
Cazarré é naturalmente um
cara observador, como é próprio dos
profissionais do jornalismo, mas nunca imaginei que fosse tão
persistente, a
ponto de passar num concurso para redator do Senado
Federal e manter em paralelo uma carreira literária recheada
de
prêmios e publicações. O primeiro só ele lembra, foi o
Prêmio
Adonias Filho, concedido em 1980 ao conto A enchente pela
Faculdade de Filosofia Santa Doroteia, de Nova
Friburgo, RJ.
Seguiu-se uma lista enorme de premiações e
edições. Sinal de que
o cara trabalha. Começou aos 14 anos,
a mesma idade com que pegou a
rabiscar as primeiras histórias.
Olhando de fora, tem-se a
impressão de uma trajetória equilibrada entre os dois ofícios, mas
não é nada disso.
“Negligenciei a literatura porque sempre
trabalhei muitas
horas por dia no jornalismo”, confessa o autor,
que vive em
Brasília desde 1977, menos o ano de 1985, passado em
Florianópolis como professor de jornalismo na UFSC, e seis
meses de
1982/83 em que voltou a morar em Pelotas, sua
terra natal.
E aqui podemos abrir um
parágrafo para contar algo
sobre os ancestrais do escritor. Os
Cazarré, franceses bascos, chegaram ao Brasil há cerca de 150 anos.
Passaram
antes pelo Uruguai, onde eram numerosos, e também pela
Argentina. Em Pelotas, onde havia uma colônia basca (num
bairro
rural chamado Capão do Leão, hoje município), o
trisavô de
Cazarré foi crupiê de um cassino. O bisavô foi porteiro de
teatro/cinema. Morreu zelador da torre de
transmissão de uma
rádio. O avô, Leovegildo, grande contador de causos, era brigadiano
– mais exatamente, cabo
columbófilo. O tio-avô Darcy Cazarré
foi dono da segunda
maior companhia de teatro do Brasil, nos anos
1940/50.
Só perdia para Procópio Ferreira. Uma boa veia
artística,
não?
Agora, vejam de onde saiu
o lado trabalhador do nosso artista. Os Silva, da família materna,
vieram em 1918 de
uma aldeia de Trás-os-Montes, onde passavam fome.
O avô
foi padeiro. A avó plantava e vendia verduras numa chácara
perto da balsa da lendária capital da granfinagem, onde
todos os
seus tios se tornaram mecânicos e as tias, operárias. Isso
provavelmente ajuda a explicar porque os personagens de Cazarré são
isentos de artificialidades. Aqui
ele revela um dos segredos do seu
ofício: com exceção do
narrador único de Noturnos do amor e
da morte, seus narradores são sempre diferentes. Ele decide se
será menino
ou velho, mulher ou menina, homem culto ou ignorante,
jornalista ou médico
etc. Definido o narrador, a linguagem
vem naturalmente
.
A autenticidade das
histórias de nosso Silva Cazarré
nasce de episódios do cotidiano,
como a morte da cachorrinha que viveu quinze anos na sua casa; a
conversa com
um amigo que, com uns poucos causos, faz o balanço
dos
desvarios de uma geração de malucos; ao passar pela casa
onde
morou com o avô; nas horas perdidas da insônia; ao
fim de uma
caminhada à beira mar; olhando as portas centenárias da biblioteca
da cidade; ao sair de uma sessão de
acupuntura; ao ajudar o
enfermeiro a vestir um homem, duro e inflexível, que
definha na cama do hospital; ao acordar de um pesadelo; após reler a
melhor história de Simões
Lopes Neto ou Carmen, de
Merimée.
Sem qualquer espécie de
preconceito, apenas como
testemunho da verdade, afiançamos que
grã-fino não entra nessa literatura, constituída por 44 contos
publicados
em cinco livros e 15 antologias. Além disso, há várias
novelas e alguns romances. E mais alguma coisa na gaveta,
naturalmente.
Apesar da vasta produção,
é mínimo o rendimento
financeiro dos livros. Nada de novo no front
literário nacional, mas até isso rende uma frase mais antiga do
que
andar pra frente: “Vivo
para a literatura, mas sustentado
pelo jornalismo”.
Do livro Exercícios espirituais para insônia e incerteza (IEL / Corag, 2012)