30.8.12

Prefácio do livro Exercícios espirituais para insônia e incerteza, de Lourenço Cazarré
Geraldo Hasse

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 Se fosse preciso formar uma seleção brasileira de contistas – para participar, por exemplo, de um congresso internacional de bruxaria e temas afins –, o nome de Lourenço Cazarré não poderia ficar fora da lista, ao lado de outros dois gaúchos (Aldyr Garcia Schlee e Renato Modernell) e três paranaenses (Dalton Trevisan, Domingos Pellegrini e Miguel Sanches Neto). É um time excessivamente sulino, dirá alguém, reivindicando pelo menos uma vaga para um paulista, um carioca e um mineiro – os mimosos da mídia.

Como a seleção é minha, abro uma vaga para o mineiro Luiz Vilela, que vive em sua terra natal, Ituiutaba. Outra para a carioca Fernanda Young e mais uma para a gaúcha Cláudia Tajes, para que não aleguem discriminação às novas gerações. Agora, se o time incluísse contistas mortos, teríamos de arranjar lugar para o goiano J. J. Veiga (1915–1999), a paulista Dinorath do Valle (1926–2004) e os gaúchos João Simões Lopes Neto (1865–1916) e Darcy Azambuja (1903–1970).

Sei que há por aí outros nomes, mas este texto não pretende fazer um balanço da narrativa curta entre nós. O que estou querendo é situar o leitor desavisado no nosso firmamento literário antes de lhe apresentar o autor deste livro. Ora, direis, apresentar veterano é chover no molhado; as estrelas das nossas letras dispensam tais expedientes. Pois lhes digo que nesse gênero de prosa, a resenha, sempre se pode agregar alguma novidade. Avante, pois.

Quando ele estreou na literatura, há 30 anos, imaginei que Lourenço Cazarré era um nome inventado. Muito bem inventado, aliás. Um dia, muito tempo depois, mas ainda na década de 1980, houve um encontro de ex–alunos de jornalismo da Universidade Católica de Pelotas. No final da reunião um colega me chamou de lado e me apresentou um cara meio carrancudo, desses que ficam te encarando em silêncio, como os atletas de judô ou os goleiros de futsal: “Este é o Lourenço Cazarré...”.


O cara não podia ser mais real. Tinha uns olhos muito perspicazes. Por trás da barba espessa, já caminhando para o grisalho, parecia um falcão – maltês, por que não? – a observar as possíveis presas se movendo no ambiente.

Na minha imaginação, alimentada por dois ou três encontros fortuitos com Dalton Trevisan em 1970 na Boca Maldita, em Curitiba, todo contista seria uma espécie de ave-de-rapina sempre pronta a pegar as histórias no ar, para azar de suas vítimas.

Sem fazer tipo, Lourenço Cazarré é naturalmente um cara observador, como é próprio dos profissionais do jornalismo, mas nunca imaginei que fosse tão persistente, a ponto de passar num concurso para redator do Senado Federal e manter em paralelo uma carreira literária recheada de prêmios e publicações. O primeiro só ele lembra, foi o Prêmio Adonias Filho, concedido em 1980 ao conto A enchente pela Faculdade de Filosofia Santa Doroteia, de Nova Friburgo, RJ. Seguiu-se uma lista enorme de premiações e edições. Sinal de que o cara trabalha. Começou aos 14 anos, a mesma idade com que pegou a rabiscar as primeiras histórias.

Olhando de fora, tem-se a impressão de uma trajetória equilibrada entre os dois ofícios, mas não é nada disso. “Negligenciei a literatura porque sempre trabalhei muitas horas por dia no jornalismo”, confessa o autor, que vive em Brasília desde 1977, menos o ano de 1985, passado em Florianópolis como professor de jornalismo na UFSC, e seis meses de 1982/83 em que voltou a morar em Pelotas, sua terra natal.

E aqui podemos abrir um parágrafo para contar algo sobre os ancestrais do escritor. Os Cazarré, franceses bascos, chegaram ao Brasil há cerca de 150 anos. Passaram antes pelo Uruguai, onde eram numerosos, e também pela Argentina. Em Pelotas, onde havia uma colônia basca (num bairro rural chamado Capão do Leão, hoje município), o trisavô de Cazarré foi crupiê de um cassino. O bisavô foi porteiro de teatro/cinema. Morreu zelador da torre de transmissão de uma rádio. O avô, Leovegildo, grande contador de causos, era brigadiano – mais exatamente, cabo columbófilo. O tio-avô Darcy Cazarré foi dono da segunda maior companhia de teatro do Brasil, nos anos 1940/50. Só perdia para Procópio Ferreira. Uma boa veia artística, não?

Agora, vejam de onde saiu o lado trabalhador do nosso artista. Os Silva, da família materna, vieram em 1918 de uma aldeia de Trás-os-Montes, onde passavam fome. O avô foi padeiro. A avó plantava e vendia verduras numa chácara perto da balsa da lendária capital da granfinagem, onde todos os seus tios se tornaram mecânicos e as tias, operárias. Isso provavelmente ajuda a explicar porque os personagens de Cazarré são isentos de artificialidades. Aqui ele revela um dos segredos do seu ofício: com exceção do narrador único de Noturnos do amor e da morte, seus narradores são sempre diferentes. Ele decide se será menino ou velho, mulher ou menina, homem culto ou ignorante,
jornalista ou médico etc. Definido o narrador, a linguagem vem naturalmente .

A autenticidade das histórias de nosso Silva Cazarré nasce de episódios do cotidiano, como a morte da cachorrinha que viveu quinze anos na sua casa; a conversa com um amigo que, com uns poucos causos, faz o balanço dos desvarios de uma geração de malucos; ao passar pela casa onde morou com o avô; nas horas perdidas da insônia; ao fim de uma caminhada à beira mar; olhando as portas centenárias da biblioteca da cidade; ao sair de uma sessão de acupuntura; ao ajudar o enfermeiro a vestir um homem, duro e inflexível, que definha na cama do hospital; ao acordar de um pesadelo; após reler a melhor história de Simões Lopes Neto ou Carmen, de Merimée.

Sem qualquer espécie de preconceito, apenas como testemunho da verdade, afiançamos que grã-fino não entra nessa literatura, constituída por 44 contos publicados em cinco livros e 15 antologias. Além disso, há várias novelas e alguns romances. E mais alguma coisa na gaveta, naturalmente.

Apesar da vasta produção, é mínimo o rendimento financeiro dos livros. Nada de novo no front literário nacional, mas até isso rende uma frase mais antiga do que andar pra frente: “Vivo para a literatura, mas sustentado pelo jornalismo”.


Do livro Exercícios espirituais para insônia e incerteza (IEL / Corag, 2012)