21.8.12

É música o dia inteiro
Lourenço Cazarré


    Era cedo, estava frio e o guri cabeceava de sono.
    – O teu corpo pede cama – disse o avô. – Aí, tu fala pra  ele: moleza, não; calorzinho, não! 
    Quando saíram para o pátio, o frio e a escuridão fizeram com que o menino estacasse. Erguendo o rosto ele viu, além da cerca no fundo do pátio, um traço vermelho na base do céu. 
    – Vamos pro meio do pomar – disse o velho. 
Entre as goiabeiras e laranjeiras a escuridão era mais fechada. O guri sentiu um pouco de medo, teve até vontade de chorar, mas engoliu um soluço e concentrou-se na figura do avô: uma mancha mais negra no meio daquele negrume. 
    – Presta atenção! 
   Viu que o velho se curvava e espalmava as mãos no chão gelado e que, a seguir, com um movimento ágil, jogava as pernas para trás: 
    – O nome disso é apoio de solo. 
    Interessado no que faria o avô, agachou-se. Percebeu então que o corpo do velho, reto como uma tábua, subia e descia, movido apenas pela força dos braços. 
    – Faço vinte, no mínimo. Mas quando me irrito com os meus braços, quando eles fraquejam, dou uma ordem a eles: mais dez! 


    O piá esfregou os braços enregelados. Seus olhos correram pelo negror que o circundava. Teria algum bicho pendurado naqueles galhos molhados? Tremia de frio, seus dentes chacoalhavam.
    As juntas dos braços do velho crepitavam.
    O vovô vai se desconjuntar, pensou.
    – Agora é a tua vez – disse o avô, ofegante, depois de pôr–se em pé.
    – O quê?
    O velho soprou forte para colocar a respiração em ordem:
    – Faz como eu: mão na frente do peito, corpo teso.
    Com movimentos delicados, o avô ajudou o guri a espichar–se por cima do chão úmido.
    – Tu não precisa atingir a perfeição no primeiro dia. Tu até pode te retorcer como minhoca em areia quente. Depois, aos poucos, tu pega a feição.
    O guri fez dois movimentos incertos, sinuosos.
    – Faz mais um – ordenou o avô.
    – Não aguento mais.
    – É por isso mesmo – disse o velho. – Teu corpo tem que aprender. Quem manda é a força de vontade. O corpo só tem que obedecer.
    O menino moveu de leve o corpo.
    – Por hoje, tá bom! Levanta!
    Um galo cantou ao longe.
    – Agora, vou te mostrar o inferno – disse o velho e se dirigiu à portinhola que ficava debaixo da escada que descia da cozinha.
    Assustado, o guri parou no centro do pátio.
    – Tô só brincando, seu pateta! Temos três peças boas aqui no porão. Vem!
    Vagarosamente, o menino dirigiu–se à porta que se abriu com um rangido de filme de terror.
    – Aqui, nesta primeira peça, guardo minhas ferramentas.
    Cauteloso, o pequeno passou pela porta aberta. Ao sentir o ranço forte de umidade e mofo, tossiu. Uma lâmpada fraca mostrava uma peça pequena, que tinha apenas uma bancada de carpinteiro. Não teve tempo de examiná-la
porque o avô já o chamava da peça seguinte.
    – Aqui dormem os passarinhos.
    O guri ficou encantado com o grande número de gaiolas que havia por ali.     Em cada uma delas havia um bichinho sonolento.
    – Daqui a pouco vou te apresentar a eles. Todos têm nome de gente. Vem.
    Passaram à última peça.
    – E aqui, vô, o que é aqui?
    – É o depósito onde a gente guarda coisas velhas. Senta.
    O guri ajeitou-se na cadeira que o avô lhe indicara, diante de uma penteadeira. O espelho estava rachado ao meio. No teto baixo, por cima da cabeça dele, pairava outra daquelas lâmpadas amareladas. O chão era de cimento áspero.
    Enquanto o velho furungava nas gavetas da penteadeira, os olhos do pequeno percorriam os cantos mais afastados da peça, mergulhados na obscuridade.
    É certo que aqui tem rato, pensou com asco e medo. Ratos e outros bichos nojentos. Cobras e escorpiões. Talvez até aqueles morcegos que chupam sangue.
    Mergulhado nessa preocupação, ele não percebeu que o avô estava de pé por trás dele, empunhando alguma coisa. Sentiu então o primeiro beliscão da máquina, na base do crânio.
    – Vou arranjar um corte de homem pra ti – disse o velho. – Mulher é que gosta de cabelo comprido.
    A máquina mordia e remordia.
    – Tu sabe o que é vaidade?
    – O que, vô?
    – Vaidade é se considerar bonito. Um homem pode ser feio. As mulheres, não. Elas são vaidosas.
    Os beliscões da máquina doíam uma barbaridade. Discretamente, o menino limpou as lágrimas.
    – Cabelo é vaidade. Então, a gente raspa. A cabeça fica livre dos piolhos.
    O guri fechou os olhos com força para evitar a saída de novas lágrimas.
    – Tá pronto – disse o velho, passando uma escova no pescoço do neto. – Vamos cortar todo sábado.
    Saindo dali, entraram na peça em que se encontravam os passarinhos.
    – Eles atravessam o dia todo cantando. Se tu prestar atenção, vais ver que sempre tem um deles piando. Cada um canta melhor do que o outro.
    O pequeno se aproximou de uma gaiola. Dentro dela, viu um passarinho amarelo todo encolhido. Devia estar morrendo de frio. Tentou enfiar o dedo entre as grades para acariciá-lo, mas o bichinho recuou.
    – O canto deles vai emendando um no outro. Um para e o outro começa. É música o dia inteiro.
    A atenção do guri foi atraída pela gaiola onde havia um bichinho diferente, mais bonito.
    – Qual é o nome deste aqui, o da cabecinha vermelha?
    – O nome dele é Pablo.
    – Não! Eu quero saber é a raça dele!
    – Ah, é um cardeal – respondeu o avô. – Também chamam de galinho-da-campina, mas eu prefiro cardeal.
    O passarinho não parava de mudar a cabeça de posição, mas continuava sempre olhando para os dois, atento.
    – É um velho cardeal sabido. Canta uma monstruosidade! Não, na verdade, não canta. Ele assobia. Queres ver?
    O velho ensaiou um trecho de música e o pássaro o imitou.
    O guri riu. Era engraçado aquilo. Então, ele próprio tentou assobiar, mas saiu-lhe um sopro falhado. De todo modo, o cardeal também o imitou.
    – Pablo sabe de tudo – disse o avô.
    Os outros passarinhos começaram a cantar.
    – Que maravilha! Eles não pagam imposto pra cantar. Cantam e pronto.
    Ficaram parados ali, por um tempo, escutando a cantoria. Por fim o velho disse:
    – Vamos subir pro café. Garanto que a velha bruxa já tá nos esperando com uma xícara fumegante de veneno.
    A avó, gorducha e baixinha, estava com as mãos cravadas na cintura:
    – O que tu fez com o cabelo do guri, Leovegildo? O coitadinho ficou parecendo um enjeitado, um louquinho de hospício.
    – Não te mete, Edméa! Isso é coisa de homem.
    – Coisa de homem! Isso é coisa de doido! Onde já se viu raspar um coco desse jeito? Aqui não é quartel.
    O avô pegou uma fatia de pão e saiu para o pátio, falando alto:
    – Vou é cuidar dos meus passarinhos que eu ganho mais.
    A velha passou a mão pela cabeça do neto:
    – Não te assusta com o teu avô. Ele é meio maluco, sim, mas tem um coração do tamanho de um bonde. Um homem que passa os dias cuidando de passarinhos não pode ser mau. Tu não acha?
    O guri concordou com um gesto de cabeça. Não respondeu porque estava mastigando um baita naco de pão com manteiga.
    – O velho passa o dia em função dos bichinhos – prosseguiu a vó. – Agora vai gastar uma hora limpando as gaiolas e botando água e alpiste pra eles. Depois vai espalhar as gaiolas pelo pátio. Tu vai ver. Ele fica trocando as gaiolas de lugar. Primeiro, bota os passarinhos no sol. Quando esquenta, leva eles pra sombra. O dia inteiro é essa dança.
    O menino coçou o pescoço. Estava com uma comichão irritante atrás da gola do pijama.
    – Onde já se viu? Zerar o cabelo do neto com uma máquina velha. Um cacheado tão lindo! Só mesmo um velho maluco! Cada vez ele está mais maniático. Por acaso ele te ensinou a fazer ginástica?
    O menino sacudiu afirmativamente a cabeça, e pegou uma nova fatia de pão.
   – É um exagero. Garanto que faz mal pra saúde dele. Está ficando gagá. É pra se mostrar. Se tu morasse aqui na cidade, se tu não viesse aqui só nas férias de inverno, ele não se exibia tanto pra ti. Como é que ele não tem vergonha? Está ficando rabugento. Só os passarinhos aguentam ele.


Do livro Exercícios espirituais para insônia e incerteza (IEL / Corag, 2012)