30.6.11

Os ursos da rua Mostardeiro
Fernando Neubarth


Leia aqui, na íntegra, um dos contos do livro Olhos de guia, de Fernando Neubarth, publicado pelo IEL em 1993.

           Sobe a Florêncio Ygartua em direção ao Moinhos de Vento. Na Dona Laura dobra à esquerda aproveitando o abrigo dos jacarandás. Há ainda um resto de lilás na teimosia ds últimas flores nos últimos dias deste dezembro de 1990. Marcelo vai ao psiquiatra.



Apesar do verão ter iniciado quente, a semana fora de temperatura amena e brisas suaves. Ao contrário de anos anteriores, o período que antecede as festas vem sendo marcado pelo desânimo. O comércio, sempre queixoso, nem se lamuria. As propagandas natalinas são escassas e o noticiário reflete a crise econômica e prenuncia um ano cinzento e mau. O país inteiro comenta a reportagem de capa da revista de maior circulação. Parece que só agora descobriram a crescente legião de miseráveis nas ruas do Brasil.

Marcelo pensa no emprego, na mulher, no filho ávido por carinhos e cuidados. Na noite anterior fizera dez anos de formado. Desta vez a turma não se reuniu, não houve comemoração. Vê passar um carro novo, importado, vermelho-vivo como os olhos da inveja. Dá de ombros, preocupa-se mais, no momento, com o futuro do menino. Colégio, estudos... “Estudo, a maior riqueza que os pais podem dar aos filhos”. Marcelo se questiona: - será? – “Parabéns, engenheiro!”, os cumprimentos recebidos há uma década ainda ecoam em sua memória. Mas parece haver um tom de zombaria naquilo tudo.

Quando chega à Mostardeiro, tenta recompor a imagem do antigo casarão derrubado. Erguerão um novo edifício ali, mas por enquanto resistem as ruínas a demarcar aposentos e peças de uma casa, de um tempo, de uma Porto Alegre que parecem querer sufocar, como se fosse possível apagar os vestígios de uma época inegavelmente melhor.

Marcelo para em frente ao local onde fora o majestoso portão de entrada. Pensa ver vultos esgueirando-se à sombra das antigas paredes. A tarde finda e a hora é de visões dúbias e penumbras. Fixa o olhar e se surpreende. Três grandes ursos pardos passeiam no que resta da mansão.

Procura alguém. Precisa avisar o perigo a todos. Bestas ferozes no centro da cidade. Lembra lições do Velho Testamento: Deus mandou duas ursas para despedaçar quarenta e dois meninos que zombaram da calvície do profeta Eliseu. Mas Marcelo está só, e os animais parecem ignorá-lo.

Consulta o relógio: está atrasado para a sessão. Olha mais uma vez em direção aos ursos – estão fuçando o lixo espalhado no terreno – e resolve seguir caminho. Não sabe se deve contar ao terapeuta o que viu. Pode parecer loucura e ele está apenas tentando resolver uma "desadaptação" à competitividade do mundo moderno.

E mais, ursos em Porto Alegre? No Brasil? Só se fossem de um circo ou  nos zoológicos. Vira um filme que fala de lobos na ilha de Manhattan. Vivem em escombros nos bairros pobres de Nova York. A cidade cresceu sobre a sua área de caça e os animais cumprem o seu destino. Mas matam apenas os fracos, os doentes, os marginais. Números que se perdem na lista dos desaparecidos sem ninguém reclamá-los. A natureza em sua sabedoria, a ancestral lei dos mais fortes.

Mas ursos em Porto Alegre?



Conto do livro Olhos de guia
(IEL/Tchê!/Igel, 1993, 150p)

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