17.6.11

Telhados vizinhos
Michel Laub


QUERO ESTE LIVRO
O marido chega da rua com a correspondência, estava sob o carpete. Informativo da clínica do doutor Bayer, workshop Mudança, dez anos de sucesso, dez anos de resultados. Está cansado, precisa de um banho. Beijo no rosto, oferece-se para alguma coisa.

    Tudo bem, ela murmura.








    Na cozinha, a louça limpa. Ela confere o armário: tudo no lugar. Escorredor de massa, detergente, esponja: no lugar.

    Abre a geladeira. Resto do pudim do almoço.

    O informativo está nas suas mãos: a equipe do doutor Bayer e seus novos treinamentos, vagas para o segundo semestre, grupos pequenos, pagamentos em até quatro vezes. Aparelhos para diminuição do estresse, AlphaStim 100 e Biofeedback GSR. Obesidade, insônia, falta de auto-estima, gagueira: milagre quem faz é você, não é milagre ter o que você sempre quis.

    O que ela sempre quis? Uma época, foi uma lavadora de roupa. Depois, um filho. À noite, é comum pensar nisso: demora um pouco para dormir, fica por uma ou duas horas pensando no escuro depois que o marido lhe dá boa-noite, depois que o marido lhe conta o dia, depois que o marido diz que ela é entre todas as pessoas do mundo com quem ele mais gostaria e gosta de estar. Ela teve a lavadora de roupa. Ela teve um filho. Ela teve todas as coisas que puseram em segundo plano outras coisas que alguém poderia querer, mesmo alguém que usou durante um semestre inteiro aparelhos para diminuição de estresse como AlphaStim 100 e Biofeedback GSR.

    Cada vez que pensa antes de pegar no sono ela se convence mais uma vez de que pouco importam os informativos da clínica do doutor Bayer, pouco importam as reuniões da clínica do doutor Bayer, pouco importam os workshops da clínica do doutor Bayer e pouco importa, sobretudo, a tarde em que estava no mesmo quarto em que dorme com o marido, no mesmo quarto em que o marido lhe diz todos os dias que ela é a pessoa com quem ele mais gostaria e gosta de estar, e da janela olhou para a calçada uma dezena de andares abaixo, e virou para trás, e enxergou a cama de casal, e girou o rosto para frente de novo, e sentiu-se mais alta que os telhados vizinhos, e pareceu ter ficado leve, mas suas mãos estavam dormentes, mas se lembrou do filho, mas se lembrou da máquina de lavar roupa. Pouco importa a cara que estava o marido quando ela serviu o jantar, no fim daquela tarde, o fato de ele ter mais uma vez perguntado se estava tudo bem, de ela mais uma vez ter dito que sim, e na manhã seguinte ter tomado café com ele e com o filho e passado o dia conferindo a louça e o escorredor massa e o resto do pudim do almoço que estava na geladeira como se mais uma vez nada de realmente importante houvesse acontecido.

Do livro Não depois do que aconteceu
(IEL, 1998, 96 p)