24.3.11

TRECHOS DO ACERVO

No volume 1, estão reunidas
oito peças nunca encenadas
        Nunca encenada, a peça Noite de reis, de Carlos Carvalho, está no primeiro dos quatro volumes de Teatro reunido, publicados pelo IEL em 2002. Confira a íntegra do texto:


NOITE DE REIS

CARLOS CARVALHO


CENÁRIO

Noite. Aposentos do Rei. O silêncio é quebrado apenas por uivos de cães noturnos. O Rei está sentado no centro da grande cama, de camisolão branco, coroa e cetro, visivelmente amedrontado. Embora seja inverno, transpira muito. Alguém se aproxima. O Rei se encolhe. O Rei é cego.



REI
Quem está aí? (Silêncio) Quem está aí? (Silêncio. O Rei se encolhe, em guarda, o cetro em punho como uma arma)

RAINHA
(entra, também de camisolão, carregando um círio aceso) O meu senhor chamou?
         
REI
(aliviado) Oh, és tu!

RAINHA
E quem havia de ser a estas horas, senhor?

REI
Não sei. Mas um rei deve estar sempre prevenido. A coroa é um acessório muito cobiçado, Rainha.

RAINHA
Ninguém duvida disto, meu senhor.

REI
Ser rei pouco vale; o que vale é a segurança real. Senta-te aqui. (A Rainha senta ao lado dele, acariciando-lhe o rosto) O que tens?

RAINHA
Nada que possa preocupar-te.

REI
Estás tremendo.

RAINHA
Estou cansada, apenas. Há muitas noites não consigo dormir.

REI
Também eu. (Exasperado) É este inverno que não termina.

RAINHA
Deve ser isso.

REI
E esses malditos cães.

RAINHA
Manda matá-los.

REI
Como se fosse possível! Ninguém sabe onde se escondem.

RAINHA
Empestam o palácio com o cheiro do pelo molhado. Parecem tão próximos! (Silêncio) Não estás bem. Tens o rosto molhado.

REI
É a coroa. Pesa muito, Rainha.

RAINHA
Pois tira-a um pouco. Poderás ao menos descansar a cabeça na almofada.

REI
Não me atrevo. Outros, antes de mim, para aliviar a cabeça perderam a vida e o reino. (Pausa) Leva-me a passear um pouco.

RAINHA
(conduzindo-o pelo aposento) Por aqui. Assim.

REI
Onde estamos?

RAINHA
Próximo à janela, senhor.

REI
E o que se vê lá fora?

RAINHA
Nada, senhor. A noite é muito escura e a torre, alta.

REI
Sim, como um abismo. Bastaria um passo em falso ou... um pequeno empurrão... (Subitamente) Leva-me de volta!

RAINHA
Como queira, senhor. (Voltam novamente para o leito)

REI
Tenho medo, Rainha!

RAINHA
Nada tens a temer, já disse. És um rei justo e tens o pulso firme. Não podes te entregar a pesadelos.

REI
Antes fossem pesadelos. Ao menos eu teria a ilusão de dormir.

RAINHA
Pois tira a coroa e descansa.

REI
Não! Bastaria um descuido. E a noite é longa, Rainha.

RAINHA
(com suavidade) Vamos, esquece os temores. (Tira-lhe, com suavidade, a coroa) Aqui me tens. Estou aqui.

REI
Até quando?

RAINHA
Não sei... Também eu tenho medo. Não consigo fechar os olhos. Dizem que a alma do outro ronda o palácio.

REI
Já não pode fazer-nos mal. Estás arrependida?

RAINHA
Nunca. Teu amor, meu senhor, compensa todos os temores.

REI
É doce ouvir-te falar assim. Para quem não confia em ninguém, é sempre bom ouvir uma palavra amiga.

RAINHA
O crime, por mais que doa na alma, é brincadeira infantil para o coração de uma mulher apaixonada.

REI
Cala-te, por favor, podem nos ouvir.

RAINHA
Estamos sós, meu Rei. E ninguém se atreveria a invadir o quarto do Rei.

REI
Foi o que fizemos com o outro.

RAINHA
Nós éramos da confiança dele. Não invadimos o quarto. Fomos chamados e aproveitamos a situação, apenas isso.

REI
Ser rei pouco vale; o que vale é a segurança real.

RAINHA
Nada deves temer. Os súditos nos respeitam, a vassalagem nos obedece, a nobreza nos admira. O resto são pensamentos negros que devemos apagar da memória.

REI
Não confies. Até na coroa que enfeita a cabeça de um rei, a morte está presente. Basta um alfinete e pronto: adeus rei.

RAINHA
Não gosto de ouvir-te falar assim.

REI
Ouço murmúrios, Rainha, bocas que sussurram por trás dos resposteiros. Os corredores são ouvidos atentos e as pedras palpitam de expectativa.

RAINHA
Deves descansar. Os assuntos do reino são encargos pesados.

REI
Sei do que estou falando. Ele também falava assim.

RAINHA
Era diferente, senhor.

REI
Não. Troca-se apenas a cabeça, Rainha. A coroa é sempre igual.

RAINHA
Agora descontrai esse rosto. Vem deitar. Eu velarei por ti.

REI
Como eu velava por ele.

RAINHA
É diferente, senhor.

REI
Sim, talvez seja diferente. A partir de hoje, dormirás neste aposento.

RAINHA
Ouve, os cães sossegaram. Há silêncio agora.

REI
Em que ponto está a noite?

RAINHA
Começa a lutar com a madrugada.

REI
(repousa a cabeça nos joelhos dela) O Rei e o trono entregues à vigília de uma mulher.

RAINHA
A força de alguém, senhor, não se mede pelo gênero.

REI
Que queres dizer?

RAINHA
Nada, nada. Trata de dormir.

REI
Tentarei. (A Rainha começa uma cantiga de embalar. Aos poucos o Rei adormece, o cetro escapa-lhe da mão, rola pelo chão. A Rainha silencia. Pousa a cabeça do Rei na almofada. Toma a coroa e a põe na sua própria cabeça. Toma o cetro e o ergue bem alto, como estandarte ou arma a desferir. Um cão uiva ao longe)

Leia também:
Volnyr Santos sobre Carlos Carvalho