Publicamos a seguir a íntegra dos textos produzidos pelos três vencedores do Desafio Literário 2019, quarta edição da competição de escrita criativa organizada pelo IEL durante a última Feira do Livro de Porto Alegre. Durante a competição, que ocorreu em cinco fases eliminatórias realizadas em cinco dias consecutivos, os participantes escreveram sobre temas sorteados em cada data nos seguintes gêneros: miniconto, poetrix, poema livre, crônica e conto. Ao final, foram selecionados vencedores os três participantes que terminaram a última fase com a maior pontuação total, classificados nesta ordem: Vanessa Conz (1º lugar), Gabriel da Fonseca Mayer (2º lugar) e Vitor José da Silva Classmann (3º lugar).
A produção completa dos três primeiros colocados pode ser conferida abaixo:
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1º lugar - Vanessa Conz
MINICONTO
Ano Sujo Novo
O adulto, sonhador, brindava e enxergava no horizonte da água seus novos planos.
A menina, aflita, removia da areia garrafa e copos – tentava resgatar o mar das mãos de velhos hábitos.
POETRIX
Ciência para beber
O Mundo suado
Haja refresco!
A ignorância dispara em graus.
POEMA LIVRE
O Reinado
Brinca a menina
Na floresta das cascas
Cata estrelas podres
Em latas de alumínio.
O brilho das sobras
Tem cheiro de lixo
Os pés acostumam-
Queimam no ácido.
Seu reino é o dejeto
Dos nobres condomínios
Onde dormem crianças
Alheias ao resto.
CRÔNICA
Vista para o futuro
Toda a discussão entre amigos verdadeiros tem eventualmente seus calores e, noutro dia, enquanto almoçava com alguns colegas e falávamos das crianças das novas gerações, mais conscientes ecologicamente e em geral bem informadas sobre temas ambientais, alguém soltou:
- Serão um bando de ecochatos!
Preferi olhar para o futuro e fugi da discussão. Imagino que, lá na frente, o amigo que proferiu a tal sentença será a espécie mais chata, possivelmente o adulto alienado ao ecossistema. Aliás, tocando no assunto, vislumbro que os seres do futuro já terão assimilado que nós, os humanos, mesmo sábios e evoluídos, seremos sustentáveis e nos perpetuaremos apenas se admitirmos que somos simplesmente mais uma das espécies deste mundo.
Intuitivamente, como uma pequena pessoa em construção, minha filha de cinco anos passeia pelo jardim de casa protegendo cada milímetro de seu ambiente. Sem se importar com o trabalho requerido, arruma todos os besouros que encontra com os cascos invertidos. Remove os “tatus-bola” da calçada e recoloca-os na terra fofa. Rega as flores. Salva minhocas do calor das calçadas. Patrulha os adultos para que não aniquilem um mosquito sequer. Nem mesmo aranha.
Esta consciência de que existe um ecossistema e de que todas as espécies possuem um papel relevante na natureza soa natural e surge espontaneamente na infância. Nós, adultos, é que precisamos de provas científicas, estudos e argumentações infalíveis para que sejamos convencidos, por muitas vezes, de obviedades.
E por falar em estudos, já li, embora ainda como leitora amadora, alguns artigos que sugerem evidências de que até mesmo vegetais, como árvores nativas, formam redes de cooperação por debaixo da terra, através de suas raízes. Com isso, trocam nutrientes e até mesmo emitem alertas de perigo para suas vizinhas, na forma de impulsos elétricos.
Mencionei, na hora do jantar com meu marido, dia desses, as habilidades sociais e até emocionais das árvores. Pensativo, ele concluiu nossa conversa dizendo que acredita cada vez mais na teoria que atribui à natureza o significado equivalente ao que as religiões denominam Deus. Nosso próximo passo, para orgulho de nossa pequena filhote, será sermos chamados de ecochatos na frente de nossos amigos!
CONTO
O Jaca
O jacarandá no sítio da vó Zoraia tinha mil anos. O pátio era imenso e verde, ao contrário dos meus olhos de menino. Todas as árvores eram altas e permitiam que eu, um guri desajeitado, porém pretensioso, passasse os domingos a migrar de galho em galho, fingindo ser Tarzan.
A árvore preferida era a mais imponente, justamente o jacarandá, ou o jaca, para os íntimos. Além de ser altíssimo, jaca tinha galhos enormes e raízes fortes e era perfeitamente possível deitar-se nele e dormir em seus braços, não fossem os mosquitos.
Nas férias de verão, eu passava dois meses na vó, que se ocupava de panelas e hortas e vez ou outra aparecia para me chamar geralmente para o almoço ou banho.
- Desce daí, guri! Um dia tu ainda se quebra.
Nunca dava atenção para sermões adultos, ainda mais do alto de uma vista tão privilegiada, de onde eu avistava o rio todo cercado de mata nativa. Era a minha selva. Trocava-a apenas por banhos de açude ou pratos com lasanha.
As férias eram sempre parecidas, exceto no verão da quinta-série, quando Zoraia chegou no pátio e falou num tom mais baixo que o usual, obrigando-me a obedecê-la.
- Desce, guri. Preciso falar contigo.
Ela era enigmática e embora muito baixa, botava medo nos cachorros. Neste dia, seu rosto estava murcho e lembrava uma folha de chicória.
Antes da morte dos meus pais, eu desejava que as férias jamais acabassem e, depois daquele dia, eu senti raiva por ter sonhado tanto viver ali. Nos meses seguintes, minha pele foi a fantasia do Tarzan e eu praticamente vivi no mato, ao mesmo tempo depressivo e livre. Eu, o Jaca, as formigas e gaivotas éramos um só.
Tudo vira lembrança e, após a mudança para a cidade, pouco pensei no sítio nos anos de estudo e trabalho que se sucederam.
Ano passado, de terno e gravata, retornei ao mato, onde erguia-se um condomínio de quinze casas de luxo, com vista para uma marina onde o rio transformava-se num estacionamento para veleiros. Sabendo que não o encontraria, procurei por Jaca.
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2º lugar - Gabriel da Fonseca Mayer
MINICONTO
Por trás do visor
A luz vermelha como sangue, como os lasers do batalhão, finalmente rasgava a cortina negra no horizonte. Ainda que pouca, aquela seria a única luz solar que ela veria por muito tempo.
Enquanto o elevador mergulhava cada vez mais fundo no subterrâneo, Renata recordava de seus antepassados que contavam como o vermelho do pôr do sol na orla costumava ser bonito. Isso tudo antes das grandes queimadas e do vermelho ser banido. Renata não conseguia imaginar um mundo onde aquela cor não significasse tristeza ou perversidade.
A iluminação tornava-se pouca, e Renata ativou a intravisão. Batidas denunciavam os roedores na tubulação, e ela temia ao imaginar o cheiro que sentiria caso retirasse sua máscara.
Ainda que ali habitasse, jamais havia sido sua casa.
POETRIX
Biblioteca Nacional
As flores da floresta de fogo
Na nefasta neve nuclear
Vida que queima nesse inverno.
POEMA LIVRE
Pela Porta Pintada na Parede
Lá no Reino de Cascalha
Foi onde me perdi
Num palácio de sucata
Reina um sábio travesti.
Atrás da negra cachoeira
E além das chuvas de festim
Onde rica é a pobreza
Diferente de onde vim.
Um lugar podre e selvagem
Mas de artes ricas e escondidas
Não há nenhuma bandidagem.
E nada de líderes fascistas!
Se não levantam o nariz
Com pouco (ou nada) se é feliz.
CRÔNICA
Observatorium
Na primeira vez em que eu fui ao planetário, minha mãe me disse que aquela construção esquisita era um disco voador, e meu eu de dois anos, é claro, acreditou. Naquela tarde, uma voz que preenchia o salão circular disse que nós estávamos levantando voo, e assim viajamos por vários planetas do sistema solar.
Fiquei frustrado quando descobri que o mais longe que a humanidade havia chegado tinha sido a lua, e ainda mais ao saber que lá só tinha um monte de buracos enormes e nenhum alienígena. Na sala de aula eu ficava sabendo que o gelo dos polos ia derretendo, o nível dos oceanos subindo, e eu achava que era por isso que Veneza estava afundando.
Quando ouvi falar da bomba atômica fiquei horrorizado imaginando um planeta Terra onde só as baratas eram sobreviventes. Mas até que isso acontecesse, certamente já seríamos capazes de ir morar em Marte, e isso me acalmava. Nada mais natural na cabeça de um jovem humano do que a certeza de que, depois que destruísse sua casa, não haveria problema algum em ir para outro planeta e começar a destruí-lo também.
Talvez seja por isso que, desde sempre, o ser humano observou o céu com curiosidade. Essa solidão que queima no âmago de uma espécie inteira, e o medo de que não haja mais ninguém por aí para nos salvar ou lugar nenhum para onde fugir.
E enquanto divagarmos, florestas inteiras queimam e tombam, tartarugas morrem sufocadas com canudos de plástico na garganta, e um bando de gente prega que, muito mais que um dos maiores biomas da humanidade, o que precisamos agora na verdade é de terras para plantar e criar gado, sair dessa crise, movimentar a economia. Se o Museu Nacional já pegou fogo e até as múmias se foram, por que não a Amazônia?
Ah, se o planetário fosse mesmo um disco voador, tudo seria tão mais fácil...
CONTO
As espumas do valão
A pequena luz vermelha se acendeu. Através das lentes da câmera de mão alocada sobre o tripé, o cenário tornava-se ainda mais admirável. E o recorte em janela widescreen potencializava a sensação insólita que aquelas ruínas abandonadas causavam.
- Vai até o fundo, Zottis.
A ponta de um dedo indicador surgiu num dos cantos do quadro no visor da câmera. Em seguida, um rapaz de cabelos descoloridos e regata surgiu sob o sol e foi entrando pela abertura escura. Tornava-se cada vez menos visível à medida que se embrenhava no salão escuro.
- Aqui tá bom? – perguntou Zottis. Sua voz reverberava pelo lugar vazio.
- Tá! – gritou Alan por detrás da câmera.
Era aquela locação que ele precisava para o curta. Ali conseguiria os enquadramentos abertos que queria, onde o personagem se reduz a um pequeno ponto na imensidão. E ninguém mais se importava com aquela construção. Explorar todo aquele mato acabou sendo uma boa ideia no fim. Tantas paisagens
bonitas, todas inacessíveis ao público.
Nesse momento, Alan lembrou da sensação de vulnerabilidade que sentiu quando ele e Zottis pularam a grade com a placa “Apenas Pessoal Autorizado” em um dos cantos remotos do Campus do Vale. A qualquer momento, um segurança poderia surgir e enxotar os dois dali.
Alan fechou o tripé ainda com a câmera ligada e levou consigo para dentro.
- Algumas das placas seguem presas na parede – disse Zottis, apontando.
“É Obrigatório o Uso de Guarda-pó”, leu Alan. Ainda que os dois tivessem visto o lugar pelo Google Maps, não sabiam do que se tratava exatamente. No entanto, os vários tonéis e câmaras de mistura sugeriam algo.
- Dizem que a água do valão daqui tem aquela espuma por causa de uma fábrica que tinha aqui antes.
Isso fazia sentido. Alan recordou do incidente noticiado na fábrica de produtos de limpeza, vários anos atrás. Tiveram que fechar as portas de tanto pagar indenização.
Zottis vasculhava tudo. O lugar despertava-lhe uma imensa curiosidade. E Alan ia atrás, registrando tudo. Até que chegaram numa escada que descia.
- Eu achei que isso aqui já fosse o subsolo – disse Alan. Os dois se olharam e desceram.
Lá embaixo era ainda mais escuro. Fracos feixes de luz entravam por rachaduras nas paredes.
Alan colocou a câmera no modo noturno.
Muitos funcionários morreram no dia do incidente. Algo deu errado na composição do produto, e isso levou à grande tragédia. O líquido vazou e inundou a fábrica, matando tudo e todos ao seu redor. E solidificando-se em seguida.
No subsolo das ruínas, jaziam corpos dos funcionários da fábrica, imobilizados, mortos e conservados pela eternidade em Cleaneflex, o melhor amigo da dona de casa. O produto do futuro era agora o mausoléu de um passado sombrio e esquecido.
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3º lugar - José da Silva Classmann
MINICONTO
Meu pai tinha cabelos dourados
Era dia de carreata em São Martinho, sem fogos e festas como quando Rafael cruzou a cidade na garupa do seu pai gritando: “Grêêmio, Grêêmio” no ano passado. Era uma carreata silenciosa dessa vez, mais amarga, com o destino amaldiçoado da cidade. Estava no carro de sua tia, no banco de trás. Quando passou por sua casa, viu as galochas que seu pai trazia da lida embarradas ao lado da porta. Ele nunca tinha visto elas ali com o sol tão alto, mas estavam. O sol queimava sua pele e fervia a lembrança dele e seu pai, ali, na mureta, a conversarem sobre o veneno pras formigas e lagartas, e o preço das sacas, e as plantas que louravam, igual à cor do cabelo do seu pai, quando estavam prontas pra colher.
E sua tia desligou o carro.
Em São Martinho, havia um cemitério de homens ao lado de uma lavoura verde de soja.
POETRIX
Livro de Apocalipse versículo 1
No princípio era o verbo
Quando os homens caíram do céu
Esquentaram o inferno.
POEMA LIVRE
As horas da saudade
Às seis passa um café aguado
Para mascarar o cheiro sulfúrico
Do desfile putrefato
De tudo que não - mais - é
Às sete desfere o primeiro golpe anônimo
No saco plástico bem gordo
E debulha com dedos tortos e afoitos
As toneladas que uma cidade inteira não - mais - quis
Às oito, azarado coitado
Enfia um caco bem agudo e afiado
Manchando de um vermelho flamengo
A pressa de não - mais - não - mais - poder - parar.
Às vinte e duas vai pra casa
Com um pedaço de pão
Põe a foto debaixo do travesseiro.
E sonha com quem não - mais - são.
CRÔNICA
3º LUGAR: Vitor José Classmann
Bicho de outro mundo
Recentemente, participei de um concurso literário – loucuras de quem ainda se atreve a escrever – e o fio temático que desafiou as mentes criativas era o meio ambiente e a natureza. Pra quem estava mais confortável escrevendo há anos enciclopédias subjetivas das emoções humanas, atirar-se para a realidade concreta e objetiva era um movimento novo. Busquei referência nas informações divulgadas – e naquelas censuradas – sobre as queimadas na Amazônia, o derramamento de óleo no nordeste, as espécies em extinção no pampa e o ciclo ecológico da água. Não me satisfiz com o que encontrei. Pelo contrário, apavorei-me com a ausência de análise sobre o animal símbolo do ecossistema brasileiro.
Acredito que tal relapso possa ser fruto, em parte, do sentimento embasbacado que a exuberância da nossa fauna e flora nos causa. Não eventualmente, quando fujo de Porto Alegre e vou para o interior, pego-me em êxtase olhando 360° à minha volta e tendo sucessívos “insights” de beleza – como se fossem pequenas revelações do divino. Fitar a natureza parece que afeta nosso sensório e cognição, resgatando alguma memória perdida, anterior ao concreto e à eletricidade, presente no inconsciente coletivo.
Outras vezes, acredito que esse relapso seja menos consequência dessa condição primitiva de quem ousa descobrir os segredos da mãe terra e mais ardilosidade de quem nos prende às aparências do mundo. Os hectares desmatados surgem como se fossem uma simples troca de vegetação. O óleo derramado no mar, apenas um desafio de lógica à inteligência dos peixes. A lama que preencha rios e arrastou vidas, uma demonstração da força da natureza. O agro no centro-oeste, a próxima aposta do mercado pop para substituir Madonna.
Eu olho para a realidade concreta e objetiva e me salta aos olhos o bicho verde a fazer macaquices e piada com as publicações de estudos e notícias que preenchem a discussão sobre meio ambiente. Como é possível que perdemos a capacidade de ver o animal proeminente incrustado na brasilidade?
Mais recentemente, quando vou ao interior, não tenho mais ficado embasbacado, pois tenho estado encucado demais com esta questão. Como é possível que tratem o dinheiro como se fosse bicho de outro mundo? Este é o animal que tem me atormentado dia e noite desde que começou este concurso literário. Sugiro, assim sendo, aos autores que se dedicam a estudar os biomas brasileiros que considerem a selvageria do lucro em suas análises, citando latifundiários e acionistas que roubam as revelações divinas para engordar os bolsos.
CONTO
Trabalho de Ciências
- Chega por hoje – gritou ele – tá ficando tarde.
Essa voz despertou um instinto aprendido de que era preciso obedecer. Era noitinha já e as crianças brincavam num terreno baldio ali perto. Álvaro jogou a bola pros guris e travou um assovio entre os dedos, bem alto, pra chamar o Pelego.
- Álvaro, não vai trazer esse pulguento pra dentro. Vai direto pro teu banho.
Assim fez sem nenhum pio. De algum lugar, um medo pesava sua cabeça, que andava baixa. No banho, fez malabarismos para que a água não escorresse no corpo. Molhava um braço de cada vez. O vergão nas nádegas ainda ardia.
Saiu do banho meio encardido ainda. Se reparasse bem, veria uma mancha de terra vermelha atrás da orelha. Mas, na verdade, ninguém reparava bem nele. Adormeceu assim, esquecido, no seu cantinho. Antes de dormir, deixou a mochila pronta e a roupa estendida na cadeira. De manhã cedo, quando o escolar passava, Álvaro precisava num pulo dar comida pro Pelego e correr pra frente de casa.
- Bom dia, crianças, meu nome é Fernanda. Deixem a mochila no fundo da sala e venham logo que hoje teremos experiência de ciências – falou empolgada a estagiária nova na escola – A aula é sobre ecologia. Alguém sabe o que isso significa?
- Não jogar lixo no chão – respondeu Pedro. – Respeitar os animais – continuou Ana.
- Isso, perfeito. Ecologia é importante para nos fazer pensar sobre a nossa relação com a natureza e o meio ambiente. Tem alguns conceitos que vocês precisam anotar no caderno – ela deu uma pausa para que colocassem a data no cabeçalho e começou – Bioma é o conjunto de espécies e características naturais de um lugar, como clima, chuva, relevo – chuva, faz dias que não chove, imagina eu e ela, só eu e ela, tomando banho de chuva, eu ficaria até tarde na rua com ela, só eu e ela, eu ia levar ela no campinho.
- Álvaro, por que tu não tá copiando?
Ele ficou envergonhado, com medo que ela tivesse percebido aquilo que nem ele sabia o que era, mas que começara a sentir. Tinha algo de magnético em Fernanda.
- Copia aqui, vou escrever no quadro.
“Tema de casa: olhar na página 67 como construir um terrário e fazer um para a Feira de Ciências da escola.”
Se Álvaro tinha uma certeza, era de que faria esse terrário, o que quer que isso fosse. Seria o mais lindo da sala. Ou melhor, ele ganharia o prêmio da Feira de Ciências e daria pra ela. Chegou em casa e disse que estava sem fome, foi direto para o fundo da casa contar pro Pelego que a menina mais linda do mundo era sua professora. Sentou embaixo do pé de goiaba com o cusco e abriu na página 67: ele precisaria de um pote preenchido com terra até o meio, insetos, sementes, mudas, regar todo dia, minhocas, o pote precisava ser transparente.
Naquele dia quando entardeceu ele já tinha feito tudo. Conseguiu um pote de pepino com dona Dulce, sua vizinha. As sementes, pegou das goiabas, bergamotas e das melancias que tinha sobrado de ontem – almoçou as frutas. Com a enxada que achou na casinha dos fundos cavoucou um buraco na terra enlameada embaixo do cano da pia e achou dezenas de serzinhos compridos e marrons. Tudo montado, regou o pote e deixou perto de onde o Pelego dormia.
Regou todos os dias assim que chegava da aula, irritando sua avó, porque insistia em ir olhar o terrário sempre antes de almoçar. A cada dia aquele pote estava diferente. Teve um, em especial, que as aranhas construíram uma coluna de seda até a tampa do pote como se quisessem alcançar o céu caso pudessem. O fascínio de Álvaro pelo meio ambiente ali criado se intensificava, criava raízes. O sentimento que tinha por Fernanda também. Pareceu que descobria novos túneis mais profundos em si, tal qual cavoucavam as minhocas.
Buzinou o escolar e ele gritou – pera, estou indo – colocou a comida na vasilha do Pelego e embarcou. Aquele dia tinha algo estranho no ar, achou que era ansiedade, pois no dia seguinte seria o dia da Feira, o dia do Prêmio, o dia de contar para ela.
Quando chegou na sala, era a diretora que estava na frente. Todos sentaram em silêncio.
- Queridos, gostaria que vocês conhecessem Odete, ela será a professora de vocês daqui em diante.
- Mas e a Fernanda? – berrou Álvaro.
- Fernanda teve problemas e não dará mais aula em nossa escola.
Essa notícia abriu em Álvaro um vazio que, também, jamais sentira. Saiu da sala correndo feito um raio e não parou de correr até chegar em casa. Debaixo do pé de goiabeira, abraçou o pote de vidro com tanta força como se ele pudesse entrar em seu peito. Chorou.
Com o regador, encheu o terrário de água até o gargalo, afogando ali o seu primeiro coração.