Texto incluído no Prosa na estrada (clique aqui e confira a versão e-book do projeto).
Capa: Roberto Schmitt-Prym sobre concepção de Martina Schreiner |
Querida
amiga,
Quanto
tempo, não?
Lembro-me
de ti criança, cabelo solto encaracolado, que tu insistias em
colocar atrás das orelhas. Mas ele, rebelde como tu, não ficava.
Tu sempre tão decidida e com tanta iniciativa.
Admirava-te muito. Segues comigo até hoje — lembranças das
brincadeiras no pátio da escola, dos desenhos
em aula, da tua voz clara e firme chamando
os colegas. Menina forte e determinada como nunca fui. Lembro-me de
uma situação, uma cena que
ficou gravada na minha memória e que me visita
de tempos em tempos, como ondas do mar, que vão
e vêm sem cansar de fazer o mesmo movimento,
seguir o mesmo percurso.
Nós
brincávamos no pátio, atividade que fazíamos
com bastante frequência, nem sempre com a participação da
professora. Naquele dia, ela, linda e doce, nos chamou para brincar
de roda. Com destreza
e agilidade, cheguei rápido e peguei sua mão. Eu consegui. Pela
primeira vez, eu estava na roda ao
lado dela, da nossa professora. Local privilegiado. Lugar dos mais
amados, dos bem comportados, dos mais corajosos e audaciosos. Tudo o
que eu não era.
Tudo o que eu queria ser. Instante de prazer e glória.
Estava no céu. Eu consegui!
Tu
vieste até mim, minha melhor amiga, e exigiu o meu lugar. Eu havia
obtido o maior de todos os
tesouros, e tinha sido por mérito, esperteza, sorte,
sei lá. Aconteceu que, naquele dia, eu consegui segurar a mão da
minha professora e tu, sem o menor constrangimento, exigiste o lugar.
Não tive escolha. Dei a ti minha maior conquista. Como um tigre
faminto e exausto, abandonei minha presa logo após o golpe fatal. E
saí vendo o último suspiro da minha caça. Não suportei a vitória.
Não me permiti vencedora.
Querida
amiga, certamente não te lembras deste episódio, pois para ti foi
apenas mais um dia. A tua conquista não teve a importância da minha
recusa.
Tive
muita raiva de ti. Este passou a ser o símbolo da minha covardia e,
mesmo parecendo paradoxal, ponto de partida para minhas conquistas.
Não ter deu-me o direito de ser.
Esta
carta não é uma queixa, minha amiga. Hoje, sigo tímida para falar
em público e continuo com
dificuldade de ter muitos amigos. No entanto, minhas mãos cresceram
e pluralizaram meus caminhos.
Com elas, embalo, acaricio, contenho. São suporte e acalanto. Crio e
escrevo, e minhas palavras tornam-se mãos que se irmanam às de
nossa professora do primário. Nem em sonho saberias a mão que me
deste.
Do
livro
Prosa na Estrada – Vol. I (IEL, 2013).
Publicado
originalmente em
Santa
sede (Fábrica
de Leitura, 2011).