Texto selecionado no projeto Prosa na estrada, cuja versão em e-book será lançada nesta quinta-feira
Que
cuidasse bem dos jardins e do cachorro: foram os desejos de Arlete
antes de partir. Dócil e soberana em nossa relação, ela ocupava os
espaços possíveis.
Por anos, minha autonomia definhou cumprindo
suas ordens com dedicação. Sigo meu caminho
agora. Seria simples fingir que não ouvi seus
pedidos. Não é o que farei. Esquecerei as agruras e
os realizarei, como uma homenagem.
Os
jardins se salvaram. Mas Apolo, o dálmata, não assimilou bem a
perda. Sobrevive com um caminhar
fiel e cabisbaixo. Três dias sem comer, fazendo travesseiro das
patas. Vagando por todas as peças,
desconsolado. Aninhou-se ao meu lado no sofá, aceitando um pedaço
de bife. Senti um alívio. Não estava preparado para um novo
velório. No dia seguinte, comeu um bocado de omelete do meu prato.
Passei a colocar sua comida num prato idêntico, que era o de Arlete.
Alcançava a mesa amparado por duas cadeiras.
Apolo
não dormia. Descobri que sofria com a claridade do quarto.
Ofereci-lhe a máscara de seda, outra herança de Arlete. Ela também
tinha problemas
com a luz.
Na
madrugada, ouvi rosnados ao lado da cama. Seus olhos tinham sede.
Mostrou-me uma dentadura de punhais pequeninos. À medida que eu me
afastava da cama, ele ia se acalmando. A sala de televisão passou a
ser o meu quarto. Pobre Apolo, a perda lhe abalara os instintos.
A
banheira de hidromassagem era um deleite meu
e de Arlete. Sensação de retorno à calidez do útero
materno. Apolo também descobriu esse prazer,
selecionando meus sais de banho com astúcia. É um descanso
merecido. Não tiro sua razão; ameniza o
sofrimento.
Nos
últimos tempos, não tolera minha presença à mesa, mas isso é
irrelevante. Com a vida atribulada
que levo, acabo fazendo as refeições fora de casa.
Desde que ele se alimente bem, eu fico satisfeito.
Ultimamente,
se interessa por leitura. Devora a biblioteca de Arlete com olhos
curiosos. Consumiu Ana
Karênina em
cinco dias. Sabendo que eu tinha alguma vocação, exigiu-me que
escrevesse para ele. Histórias de animais, ele queria.
Indiquei-lhe A
revolução dos bichos.
Custou-me uma semana de cativeiro neste quarto. Daqui, tenho uma
excelente vista da rua e posso inclusive ver os jardins de Arlete, em
frente à casa. Monótono, mas não me queixo. Precisava de um tempo
para mim. Sexta-feira saio daqui,
direto fazer minhas vacinas. Pedi uma tosa também,
mas ele sugeriu que eu me livrasse dessas vaidades.
Do
livro Prosa
na estrada – vol. I (IEL, 2013)
Publicado
originalmente em Descontágio
(Scortecci,
2008)