INFORMAÇÕES DO LIVRO |
Uma barata acordou um
dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas patas
e descobriu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação
difícil. Acionou suas antenas e não tinha mais antenas. Quis emitir um pequeno
som de surpresa e, sem querer, deu um grunhido. As outras baratas fugiram
aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do
móvel. O seu primeiro pensamento humano foi: que vergonha, estou nua! O seu
segundo pensamento humano foi: que horror! Preciso me livrar dessas baratas!
Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente, ela
seguia o seu instinto. Agora precisava raciocinar. Fez uma espécie de manto da
cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa, caminhando junto à
parede, porque os hábitos morrem devagar. Encontrou um quarto, um armário,
roupas de baixo, um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para um
ex-barata. Maquilou-se. Todas as baratas são iguais, mas uma mulher precisa
realçar a sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu
que só um nome não bastava. A que classe pertencia? Tinha educação? Referências?
Conseguiu, a muito custo, um emprego como faxineira. Sua experiência de barata
lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas; era uma boa faxineira.
Difícil era ser gente. As baratas comem o que encontram pela
frente. Vandirene precisava comprar sua comida e o dinheiro não chegava. As
baratas se acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos não. Se
conhecem, namoram, brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que
o dinheiro vai dar? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama,
mesa e banho. A primeira noite. Vandirene e seu torneiro mecânico. Difícil.
Você não sabe nada, bem? Como dizer que a virgindade é desconhecida entre as
baratas? As preliminares, o nervosismo. Foi bom? Eu sei que não foi. Você não
me ama. Se eu fosse alguém você me amaria. Vocês falam demais, disse Vandirene.
Queria dizer vocês, os humanos, mas o marido não entendeu; pensou que era vocês,
os homens. Vandirene apanhou. O marido a ameaçou de morte. Vandirene não
entendeu. O conceito de morte não existe entre as baratas. Vandirene não acreditou. Como é que alguém podia viver sabendo que ia morrer?
Vandirene teve filhos. Lutou muito. Filas do INPS. Creches.
Pouco leite. O marido desempregado. Finalmente, acertou na esportiva. Quase
quatro milhões. Entre as baratas, ter ou não ter quatro milhões não faria
diferença. A barata continuaria a ter o mesmo aspecto e a andar com o mesmo
grupo. Mas Vandirene mudou. Empregou o dinheiro. Trocou de bairro. Comprou
casa. Passou a se vestir bem, a comer e dar de comer de tudo, a cuidar onde
colocava o pronome. Subiu de classe. (Entre as baratas, não existe o conceito
de classe.) Contratou babás e entrou na PUC. Começou a ler tudo o que podia.
Sua maior preocupação era a morte. Ela ia morrer. Os filhos iam morrer. O marido
ia morrer – não que ele fizesse falta. O mundo inteiro, um dia, ia desaparecer.
O sol. O Universo. Tudo. Se espaço é o que existe entre a matéria, o que é que
fica quando não há mais matéria? Como se chama a ausência do vazio? E o que
será de mim quando não houver mais nem o nada? A angústia é desconhecida entre
as baratas.
Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado de
novo numa barata. Seu penúltimo pensamento humano foi: meu Deus, a casa foi
dedetizada há dois dias! Seu último pensamento humano foi para o seu dinheiro
rendendo na financeira e o que o safado do marido, seu herdeiro legal, faria
com tudo. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel. Não
pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu em cinco minutos, mas foram os
cinco minutos mais felizes da sua vida. Kafka não significa nada para as
baratas.
Do livro 35 melhores contos do Rio Grande do Sul (IEL/Corag, 2003)