LEMBRANÇA DE EDUARDO GUIMARAENS
THEODEMIRO TOSTES
QUERO ESTE LIVRO |
1908. Todas as noites uns rapazotes se juntavam por fim na Praça da Caridade, em frente da Santa Casa, e ali se despediam até de madrugada, conversando, declamando, espalhando no ar adormecido irreverências e fanatismos. Todas as noites e todas as estações. Naquele tempo, as estações marcavam principalmente os sentimentos literários, apesar do frio de julho e do calor de janeiro. Sete rapazes. Cada um com o seu jeito. Nenhum influía em nenhum.
Esses rapazes amigos de Álvaro se chamavam Homero Prates, Carlos Azevedo, Antônio e Francisco Barreto, Felipe de Oliveira e Eduardo Guimaraens. Todos gostavam de poesia. Todos gostavam de música. Todos gostavam de pintura. E a pracinha da Santa Casa, por causa deles, virava academia noturna onde todos os exageros eram aceitáveis.
Todos os exageros. Até mesmo a presença de um poeta de 16 anos – um menino prodígio, como se dizia antigamente – já autor de um livrinho de poesia que tinha o título um tanto ousado de Caminho da vida. Era “um adolescente quase louro, de olhos claros de mulher”. Que fazia sonetos sobre o crepúsculo, sobre as pedras preciosas e sobre a morte...
Seu nome era Eduardo Guimarães. Um nome comum a que daria a forma latinizada e quase heráldica de Guimaraens. (...)
Os sete rapazes liam tudo, numa época em que o francês, o italiano e até o alemão ainda eram ensinados nos colégios. Era também a época fácil em que havia nos mostruários das livrarias livros recém-editados em Paris e em outras cidades mais ou menos inatingíveis.
Daí que os rapazes, mesmo de longe, podiam fazer um curso poético em Paris, e até conviver, à sua maneira, com um ou outro grupo literário. Alguns frequentavam os poetas sages. Outros preferiam os poètes maudits. Conservando uma ternura muito especial pelo velho Baudelaire que era o pai de todos.
Dos sete rapazes, Eduardo foi talvez o mais fiel às suas origens. Picado pela mosca azul do Simbolismo, ele procurou transpor para a nossa língua todas as nuanças, meio-tons e sutilezas de uma língua mais dúctil e mais trabalhada. Sua sensibilidade, seu ouvido fino, o ajudavam nesse mister de quase artesanato literário. Foram os seus anos de aprendizado, de que nasceriam os temas da Divina quimera.
Para o leitor de hoje, acostumado a certas obras publicadas em que o sentido puramente comercial vence qualquer preocupação artística, uma edição como a da Divina quimera, datada de 1916, parecerá um luxo bibliográfico. Aqueles requintes de Vergé d’Arches, papel Lafuma ou papel de Holanda, como iniciais destacadas e páginas de rosto em branco, eram coisas da belle époque literária. Porque o livro de Eduardo, ainda que editado no Brasil, está mais ou menos dentro desses figurinos tipográficos. Apesar de sua tiragem ter sido normal e de estar o seu preço, mesmo na época, ao alcance dos consumidores de poesia. (...)
Uma leitura ou releitura dos poemas admiráveis de Eduardo faz a gente voltar a um tempo em que o conceito de poesia estava mais ligado às outras artes do que aos meios de comunicação. Mesmo sem o rigor de um Valéry, o poeta trabalhava o poema como o pintor trabalha o seu quadro ou o músico a sua composição. Em cada poema de Divina quimera sente-se o artista ao lado do poeta. Alguns deles tiveram várias versões, como os sonetos da segunda parte.
Mas a leitura mais fácil – para o leitor de hoje, principalmente – é daqueles poemas de tom intimista que tanto encantavam Ribeiro Couto. Os jardins. As casas fechadas. Os primeiros frios. As ruas mortas. E aquele delicioso noturno que fica na memória como um adágio:
Seu nome era Eduardo Guimarães. Um nome comum a que daria a forma latinizada e quase heráldica de Guimaraens. (...)
Os sete rapazes liam tudo, numa época em que o francês, o italiano e até o alemão ainda eram ensinados nos colégios. Era também a época fácil em que havia nos mostruários das livrarias livros recém-editados em Paris e em outras cidades mais ou menos inatingíveis.
Daí que os rapazes, mesmo de longe, podiam fazer um curso poético em Paris, e até conviver, à sua maneira, com um ou outro grupo literário. Alguns frequentavam os poetas sages. Outros preferiam os poètes maudits. Conservando uma ternura muito especial pelo velho Baudelaire que era o pai de todos.
Dos sete rapazes, Eduardo foi talvez o mais fiel às suas origens. Picado pela mosca azul do Simbolismo, ele procurou transpor para a nossa língua todas as nuanças, meio-tons e sutilezas de uma língua mais dúctil e mais trabalhada. Sua sensibilidade, seu ouvido fino, o ajudavam nesse mister de quase artesanato literário. Foram os seus anos de aprendizado, de que nasceriam os temas da Divina quimera.
Para o leitor de hoje, acostumado a certas obras publicadas em que o sentido puramente comercial vence qualquer preocupação artística, uma edição como a da Divina quimera, datada de 1916, parecerá um luxo bibliográfico. Aqueles requintes de Vergé d’Arches, papel Lafuma ou papel de Holanda, como iniciais destacadas e páginas de rosto em branco, eram coisas da belle époque literária. Porque o livro de Eduardo, ainda que editado no Brasil, está mais ou menos dentro desses figurinos tipográficos. Apesar de sua tiragem ter sido normal e de estar o seu preço, mesmo na época, ao alcance dos consumidores de poesia. (...)
Uma leitura ou releitura dos poemas admiráveis de Eduardo faz a gente voltar a um tempo em que o conceito de poesia estava mais ligado às outras artes do que aos meios de comunicação. Mesmo sem o rigor de um Valéry, o poeta trabalhava o poema como o pintor trabalha o seu quadro ou o músico a sua composição. Em cada poema de Divina quimera sente-se o artista ao lado do poeta. Alguns deles tiveram várias versões, como os sonetos da segunda parte.
Mas a leitura mais fácil – para o leitor de hoje, principalmente – é daqueles poemas de tom intimista que tanto encantavam Ribeiro Couto. Os jardins. As casas fechadas. Os primeiros frios. As ruas mortas. E aquele delicioso noturno que fica na memória como um adágio:
Interiores à luz das lâmpadas! De quando
em quando, apraz-me contemplar-vos, caminhando.
Janelas ao anoitecer, iluminadas!
Olho-vos com inveja, ao longo das calçadas,
quando agoniza o outono e quando, lento, o frio
faz do desejo um doce e mórbido arrepio!
Se o amor na Divina quimera é sempre aquele amor que move, o virtuosismo do artista o leva a uma busca de outros temas em que possa fruir o prazer do verso. Das suas lembranças de vida, das suas lembranças de leitura, da música que sempre o encantou, da sua inquietação, das suas angústias, ele tira a pura essência poética e a riqueza rítmica dos seus versos. É um poeta que goza o verso, que sente a volúpia de ser poeta. Conservando vivo em cada poema o tema do amor que é o motivo-guia.
Como poeta e artista do verso, Eduardo foi também um excelente tradutor. Este homem “que lia tudo e sabia tudo” – para citar ainda o nosso Álvaro – dominou como poucos entre nós a arte de interpretar e de verter alguns dos poemas que o fascinavam. Sua tradução do Canto quinto do Inferno o coloca entre os grandes tradutores de Dante, poeta, às vezes, tão maltratado na nossa língua. (...)
Mas o seu chão era a França. O seu chão literário, naturalmente. Traduziu as Fêtes galantes, de Verlaine, e se alongou com gosto no mundo único das Fleurs du mal, de Baudelaire. Estas e outras traduções, feitas com a mesma fidelidade e carinho, foram reunidas por ele num volume intitulado Rosas de França, que não chegou, infelizmente, a ser publicado. (...)
No livo que Mansueto Bernardi lhe dedicou e onde reuniu uma parte dos seus poemas esparsos, há um poeminha que Eduardo escreveu, já no começo da sua doença, e que vale por um desabafo ou talvez um testamento poético:
Como poeta e artista do verso, Eduardo foi também um excelente tradutor. Este homem “que lia tudo e sabia tudo” – para citar ainda o nosso Álvaro – dominou como poucos entre nós a arte de interpretar e de verter alguns dos poemas que o fascinavam. Sua tradução do Canto quinto do Inferno o coloca entre os grandes tradutores de Dante, poeta, às vezes, tão maltratado na nossa língua. (...)
Mas o seu chão era a França. O seu chão literário, naturalmente. Traduziu as Fêtes galantes, de Verlaine, e se alongou com gosto no mundo único das Fleurs du mal, de Baudelaire. Estas e outras traduções, feitas com a mesma fidelidade e carinho, foram reunidas por ele num volume intitulado Rosas de França, que não chegou, infelizmente, a ser publicado. (...)
No livo que Mansueto Bernardi lhe dedicou e onde reuniu uma parte dos seus poemas esparsos, há um poeminha que Eduardo escreveu, já no começo da sua doença, e que vale por um desabafo ou talvez um testamento poético:
Que vos importa ouvir a voz de um peregrino?
Pouco vale saber se cantei ou chorei;
se fiz mal, se fiz bem, se aceitei o destino;
se gozei ou sofri; se amei ou se odiei.
Sou uma sombra a mais no caminho divino...
E como apareci, desaparecerei.
Os moços de hoje – falo daqueles que ainda acreditam em poesia – deviam tentar um encontro com Eduardo, que foi uma das vozes mais puras da nossa terra. Seria a maneira de mostrar que um poeta não desaparece, quando deixa uma obra em que cada geração pode encontrar ainda o mesmo significado e a mesma presença.
Do livro Theodemiro Tostes – Porto Alegre, modernismo, poesia, memória (Org. Tania Carvalhal, IEL/EDIPUCRS, 2009, 263 p.). Texto publicado originalmente em 16/12/1978.