Neste texto especial para o blog do Instituto Estadual do Livro, Maria Carpi presta homenagem à poeta, professora e jornalista Lara de Lemos (1923-2010), a quem foi dedicado o 14º fascículo da série Autores Gaúchos (1987). De Lara, o IEL também publicou Amálgama (1974), Lara de Lemos: antologia poética (2002, organizado por Volnyr Santos) e Passo em falso (2006), sua última obra.
Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis.
Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere)
Em todos os regimes despóticos, pessoas tombam e outras sobrevivem. Os sobreviventes têm a missão de falar pelos que tombam. A violência, segundo Hannah Arendt, é a desintegração do poder que, inerente à comunidade política, se configura como a capacidade para agir em conjunto. Na tirania não há escolha nem consenso, apenas um funil ideológico por onde são empurrados os indesejáveis. Isso ocorreu em todos os tempos e em todas as ditaduras e fundamentalismos. E os sobreviventes são o cochilo do verdugo.
Poderia tê-los matado ou assim pensou que fizera quando não lhes escutou a tênue respiração que restava. Ou o ferimento, se esquivando do coração, não foi fatal. Ou o verdugo estava cansado de tantas encomendas num só dia. Mas aquele pequeno sopro de vida tinha a missão de levantar a chama dos que pereceram. Os holocaustos são uma prova viva dessa missão de prosseguir.
Pensamos: isso só ocorre com os outros, como a morte é sempre alheia. E de repente, também estamos enredados. Ou fechamos os olhos ao enredo. E saindo de um longo pesadelo de ditadura e da mordaça, começamos a acreditar na democracia. Não apenas representativa, mas participativa. Do tratamento tutelar ou ao reboque do capital, para uma efetiva construção do bem comum em todos os espaços públicos.
E aqui lembro e presto homenagem a uma poeta que recentemente nos deixou, Lara de Lemos, sobrevivente ao sistema da delação e da tortura. A mesma que escreveu o poema do Hino da Legalidade. E após ser arrastada aos porões da ditadura com seus filhos, ao sair, reuniu forças para escrever, na missão de falar pelos desaparecidos, O Inventário do Medo. A esse livro Moacyr Scliar assim se refere: “Toda a sua aflição, toda a sua dor - que eram (e são) a aflição e a dor de milhões de brasileiros – estão nas páginas do Inventário do Medo”. E acrescenta: “uma voz como de Lara tem de ser ouvida”. Uma voz que é testemunho, um medo transformado em coragem de testemunhar. O verdugo cochilou e Lara, em seu dizer poético, ungida com o sangue dos mortos e a teimosia do musgo, ainda pode cantar versos de pedra: “Só peço palavras duras, numa linguagem que queime”.
Essa linguagem de Lara permanece viva em sua poesia de compromisso e beleza com nossa humanidade. Sim, precisamos ouvi-la. Ela e Lila Ripoll – outra poeta lírica gaúcha que também foi presa pela ditadura quando se encontrava enferma – não se eximindo do poema pátrio, não permitiram que o fel dos sonhos protelados impregnasse a poesia, fazendo-a justamente muito mais nobre e bela. Ambas querem-se poesia na liberdade para todos, como um pão a repartir. O alto lirismo de quem tem os pés no chão e quer caminhar com os demais. Ela nos diz: “o que te peço é simples, leve – um dia de sol, de paz, de dor nenhuma, breve.” A brevidade eterna da alegria de compartilharmos os bens da vida.
E também cochilou o verdugo quando chegou a ponto de matar, e não matou, uma jovem que seria eleita a primeira mulher Presidente do País. A história humana é um rio que sabe desaguar no mar do assombro.
MARIA CARPI
Defensora pública e poeta
Defensora pública e poeta