O título é do prefácio escrito por Léa Masina para a quarta edição de O 35º ano de Inês, de Tânia Faillace, editado pelo IEL em 2002.
Falar do impacto que O 35º ano de Inês causou entre os leitores e da sua importância para a definição cultural dos anos setenta no Rio Grande do Sul, quando a contestação dos valores tradicionais, lentamente, alcançava alguma visibilidade, não basta para justificar o interesse que sua leitura ainda suscita.
Sem desprezar o contexto de produção, sempre necessário, quando se trata de justificar criticamente uma obra literária, o que mais justifica a reedição deste livro é a competência de Tânia Faillace em articular, numa linguagem coerente e plena, os fatos e os sentimentos que compõem a visão de mundo e a trajetória das mulheres de seu tempo. É bom lembrar que, entre nós, a superação do estado de submissão da mulher foi desencadeada, nos anos setenta, pelo advento da pílula anticoncepcional e pela apropriação de ideias das militantes feministas, europeias e norte-americanas, em circulação pelo mundo. Na literatura, porém, ocorreram deslizamentos entre vida e ficção. Nesse sentido, Tânia Jamardo Faillace é um exemplo da capacidade de radicalizar seus projetos, aproximando vida e literatura, para cobrar de ambas o direito à igualdade e o respeito entre homens e mulheres.
Narrando com sutileza e coragem, Tânia relata, nesta obra, os entraves domésticos e familiares que, por longos anos, impediram a mulher de emancipar-se. Suas histórias documentam a tristeza desses processos que se resumem na luta pela realização de um desejo que tanto pode direcionar-se para o amor livre e pleno, como para o trabalho e até mesmo para a morte justa, no sentido oposto ao das falsas tradições. Além disso, suas personagens reivindicam um espaço que não seja subalterno ou complementar ao dos homens, pois suas necessidades são prementes numa sociedade que oculta e dissimula o desejo da mulher, idealizando-a e cobrando dela uma assepsia contrária às urgências do corpo e da alma.
Radical no tocante às ideologias, e também à qualidade literária de seus textos, Tânia Faillace acolhe, em seu universo ficcional, os anseios femininos coletivos. Para além da coragem e da inovação temática, seu domínio de expressão e o consequente ajuste da linguagem asseguram o interesse dos leitores motivados pela qualidade da obra. Outras escritoras já haviam tentado, antes e depois dela, dar voz à mulher em poemas ou em prosa. E muitas o conseguiram. Não obstante, coube a Tânia fazê-lo, de modo pioneiro, pela agudização temática, cercando a questão pelo eixo da condição humana. Construindo identidades marcadas pela solidão e pelo enfrentamento, ela mapeou, nos três contos do livro, a trajetória individual de mulheres de idades e extrações sociais diversas. Ao narrar os conflitos que pontuam essas trajetórias, subjugadas pelas convenções de uma sociedade que lhes reprimia a vontade e a esperança, Tânia resgatou vozes excluídas que lutavam por serem ouvidas, embora já vivêssemos na segunda metade do século vinte. Texto enxuto e correto, nele cabem tanto os acontecimentos quanto as nuanças de sentimentos, quando as personagens se rebelam e pagam o alto preço de se tornarem senhoras de seus destinos. Sob a roupagem episódica, essa façanha se repete nas três narrativas: nelas, o olhar feminino se reconhece através dos outros como um olhar estrangeiro, perdido num mundo tornado hostil pelo domínio das convenções e dos preconceitos.
Mesmo num texto breve como este, não se pode deixar de mencionar a participação da escritora na vida cultural gaúcha: além do exercício do jornalismo, como repórter, ela trabalhou inclusive como produtora de programas de rádio e de televisão, escreveu e publicou peças de teatro, participou de diversas antologias. Durante os longos anos da ditadura brasileira, Tânia militou na imprensa e fora dela, lutando pela liberdade de opinião e repudiando a censura, então imposta aos escritores, artistas, jornalistas e intelectuais. E foi através da literatura que sua natureza guerreira encontrou um bom modo de expressão: seus contos resgatam a voz velada de um feminino oculto pelas aparências de uma sociedade conservadora e provinciana, na qual a vida é ritualizada por tarefas domésticas que, por sua vez, são o simulacro do desejo: de saber, de conhecer a si e aos outros, de realizar-se, de se fazer respeitada. Dizer isso me faz lembrar Flaubert, para quem Emma Bovary distinguia-se das mulheres domesticadas que infestavam as pequenas províncias francesas: por serem incapazes de qualquer inquietude, igualavam-se às galinhas e aos porcos que viviam nos cercados de seus espaçosos quintais.
Por todas essas razões, acredito que a reedição de O 35º ano de Inês possibilitará aos leitores conhecer, ou reconhecer, uma obra que define as diretrizes da literatura gaúcha contemporânea pela inserção de um pensamento rebelde e novo. E que, negando-se ao vazio das elucubrações formais em voga quando de sua publicação, deitou raízes no pensamento crítico que preside a literatura escrita por mulheres.