19.12.18

Desafio Literário 2018 - Textos dos vencedores

Publicamos a seguir a íntegra dos textos produzidos pelos três vencedores do Desafio Literário 2018, terceira edição da competição de escrita criativa organizada pelo IEL durante a última Feira do Livro de Porto Alegre. Durante a competição, que ocorreu em cinco fases eliminatórias realizadas em cinco dias consecutivos, os participantes escreveram sobre temas sorteados em cada data nos seguintes gêneros: miniconto, poetrix, poema livre, crônica e conto. Ao final, foram selecionados vencedores os três participantes que terminaram a última fase com a maior pontuação total, classificados nesta ordem: 1) Celso Gonzaga Porto; 2) Marcos Eizerik; 3) Eduardo Bizarro Pereira Porto.


A produção completa dos três primeiros colocados pode ser conferida abaixo: 


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1º lugar - Celso Gonzaga Porto


Miniconto


DEVASTAÇÃO

Movimento frenético de resíduos em sobrevoo. O assovio insistente no encontro com quinas e frestas. Em minutos, entulhos. Tudo devastado.

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Poetrix


DIVAGANDO 

Quando o pensamento voa 
A alma transpira anseios 
A mente exala devaneios

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Poema Livre


SOLIDÃO 

Quarto vazio e silente 
No vaso, somente uma flor 
A exalar perfume, 
Aroma com cheiro de amor 
O olhar fixo 
Quem sabe a sufocar um grito 
Num pensamento distante 
Agora 
Os olhos fixam na flor 
Num sentimento de saudade, 
Que tropeça na maldade 
Da parceira que se foi 
Aquele mimo, era p’ra ela 
Partiu sorrindo e levou 
A paixão que era só dela. 
Aquele mimo, era p’ra ela 
Mas ela, não mais voltou.

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Crônica


AS “VIÚVAS” 

Tudo corria normal no velório, como em qualquer velório. Quem estava em pé, cruzava e descruzava os braços. Os sentados, cruzavam e descruzavam as pernas. E no mais, todos se entreolhavam com cara de bobo; sem nada a fazer; sem nada a dizer. 

De várias mulheres que se aproximaram do morto, se ouviu a característica choradela: “Tão bom… E era só meu.” Depois da quinta que se aproximou do ataúde, já na madrugada, todas perceberam que o “só meu”, não passava de mera ilusão. O Juca, com todo o jeitão de boa gente, tinha um verdadeiro harém. 

E foi aí que o tempo fechou. No primeiro puxão de cabelo, uma peruca sobrou na mão da antagonista. Um olho de vidro foi parar junto à coroa de flores com a famosa faixa com os dizeres: “SAUDADE ETERNA”. Uma delas não conseguiu levantar da cadeira. A muleta tinha sido usada como arma por uma das “viúvas”. Ela não conseguia manter o equilíbrio apenas com uma perna. Pior foi uma dentadura que foi parar no meio das pernas do morto. Ou seja. Deu para perceber que do Juca não escapava nada. 

Já quase ao clarear do dia, alguns homens que participavam da cerimônia conseguiram apaziguar os ânimos. Foi um pedido desesperado da viúva que só aí, no último momento do Juca, tomou consciência do fato de ter sido enganada o tempo todo. Mas engoliu em seco. Afinal, tinha de preservar os filhos que nada tinham a ver com a história. Os amigos conseguiram fazer com que as falsas viúvas deixassem o velório. Já tinham causado rebuliço demais.

E a cerimônia continuou no mesmo “ritual”; cruza e descruza braços; cruza e descruza pernas. Às vezes, uma aproximação ao caixão, o olhar fixo no morto e a mão batendo no ombro do parente com um sacudir de cabeça, sem que nada possa ser dito. Pelo menos que amenize a situação. Por fim, chega a hora da “encomendação” do corpo. Alguém paramentado, com um livrinho na mão, borrifa água benta no cadáver, diz alguma coisa e manda que todos digam amém. O defunto está pronto para “seguir viagem”; a última, por sinal. 

Fechado o caixão, saem todos acompanhando o trajeto. Cabeça baixa, as mãos às vezes cruzadas na frente, às vezes nas costas e, enfim, a sepultura começa a ser lacrada. 

É o momento em que paramos para refletir que, um dia, voltaremos a estar em um ambiente semelhante, onde todos os trejeitos vão se repetir, onde o constrangimento impedirá que se diga algo, e nós estaremos tranquilos e serenos. 

Tranquilos e serenos? 

Sim. Simplesmente porque todos estarão fazendo reverência a nós. 

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Conto


RETOMADA

Ramires não se conformava com os últimos acontecimentos. Perdera o emprego recentemente, nem ele mesmo entendia muito bem o porquê. Ganhava razoavelmente bem e, num piscar de olhos, sua esposa com trabalho mais modesto é quem mantinha o essencial em casa. 

Imediatamente, largou currículo em diversas empresas de médio o grande porte. Até faria entrevistas, mas no final a resposta era negativa. 

Sua mãe, devota de todos os santos e até de mandingas, implorava aos recursos do além pelo sucesso do filho, mas a maratona continuava. Ramires, na verdade, não era adepto dos rituais de devoção da mãe. Acreditava mesmo era no esforço desprendido em busca dos objetivos. Mas o tempo foi passando e os insucessos acontecendo a cada nova investida. 

O sistema nervoso começou a ficar abalado. Não era confortável ver que a mulher era quem sustentava a casa sozinha. Achava razoável que ela trabalhasse para ajudar nas despesas mas, para manter tudo, não achava justo. 

Passados tempos naquela situação, Ramires teve oportunidade de parar e refletir sua situação. Por que com formação e grande experiência, os caminhos se lhe fechavam as portas? 

Em conversa com um amigo, ouviu um parecer. Ele havia deixado a última empresa com um salário elevado. Isso representava um entrave para nova admissão, já que não era de bom tom que se rebaixasse o salário na carteira.

A partir daí, Ramires mudou os caminhos. Fez curso de aperfeiçoamento em informática. Mudou o foco da sua busca por trabalho e assim, conseguiu um estágio por conta do curso. Durante esse período, chamou a atenção dos donos da empresa pelo discernimento daquele estagiário, a facilidade com que dominava o trabalho e o entusiasmo com que enfrentava os desafios. 

Concluído o estágio, foi convidado a exercer na própria empresa um cargo de auxiliar junto a uma das direções. Dia a dia, sua dedicação era maior. Afinal, estava deixando um período de ostracismo profissional para retomar seu caminho. 

Passados dois anos, o diretor com quem trabalhava foi transferido para uma filial da empresa, recentemente aberta no exterior. Com surpresa, Ramires recebeu o convite para ocupar o cargo. 

Em pouco tempo, o salário já superava aquele do emprego anterior e o forte embasamento lhe dava a cada dia condições de manter a empresa no mais alto conceito. 

A percepção de mudar o foco para a procura foi preponderante para o seu sucesso. 

Ramires ratificou seus princípios de que a luta constante conduz aos objetivos. 

Por sua vez, sua mãe passou a contar para a vizinhança que seu filho foi salvo pelos trabalhos espirituais que ela desenvolveu. 

O fato é que, bem ou mal, as energias positivas se somaram.
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2º lugar - Marcos Eizerik


Miniconto


RODAS 

Fim de tarde. Quando o sol começa a se despedir do dia. A primavera trazia as primeiras flores e a temperatura, nem quente, nem fria, convidava para um passeio. Sempre gostei de passear. Com minha mãe, com meu pai, com minha avó já bem velhinha. 

De olhos abertos, fechados, curiosos. O que me fascinava era conhecer novos lugares, novas pessoas. No céu, agora nublado, as estrelas começavam a piscar. No chão, folhas iniciavam sua dança ao ritmo do vento. O tempo mudava. A ventania se apresentava. Perfeito! Ela me trazia lembranças que flutuavam no ar. Mãos nas rodas. O primeiro impulso é sempre o mais difícil. E lá vamos nós para mais um passeio: eu e minha cadeira de rodas.

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Poetrix


FOME 

Sonhar é prato cheio 
Sonho de olhos abertos 
Sonho de doce de leite.

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Poema Livre


ROMA 

Como uma lança que perfura 
Ao som das palavras débeis 
Desde ursão até minha fofura 
Ele passa dos 80 decibéis 
O feio lhe parece bonito 
O gordo é seu forte 
O gemido vira grito 
O perdido um novo norte 
Sua ausência traz arrepio 
É angústia, insônia, ferida 
O quente passa a ser frio 
Tudo na espera da comida 
Ver os olhos cerrados 
Tocar as mãos atadas 
Falar com lábios calados 
Cheirar velas apagadas 
De traz para frente 
Pagão louvor 
Do ateu ao crente 
Todos os caminhos levam ao amor.

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Crônica


DE MORRER DE RIR 

Ele sempre gostou de fazer graça. Gostava de contar que, quando nasceu e o médico bateu na sua bunda, em vez de chorar, gritou: 

- Vai bater na mãe! 

Na escola, sentava no fundão. Sempre tinha uma resposta na ponta da língua – língua afiada. Seus super-heróis não tinham capa nem espada: tinham ironia e sarcasmo. Do Barão de Itararé, chegava até ter pôster colado na posta do quarto. Para quem dizia que isso era fase, que passaria com o tempo, citava: 

- O problema não é mudar de ideia, é não ter ideia para mudar. 

Com seus um metro e setenta, sessenta e cinco quilos, olhos castanhos e cabelo um tanto quanto crespo, não era um modelo de beleza. Por isso, quando conquistou Berta, uma coisa era certa: ela gostava de sorrir. E ele adora fazê-la feliz. Para os que não entendiam como aquela morena de lindos olhos azuis poderia ter casado com Paulo, a resposta saía num piscar: 

- Eu tenho ótimo gosto para mulheres. Ela tem péssimo gosto para homens. 

É bem verdade que ele aprontava. Muitas vezes suas brincadeiras assustavam Berta. Toda vez que eles comiam peixe, ele fingia se engasgar e tossia, tossia e tossia. De repente, colocava a mão na boca e tirava a espinha inteira do pobre animal – claro, devidamente escondida antes na mão. 

Com o tempo e as repetições, a brincadeira deixou de assustar e virou um clássico nos almoços da família. Primeiro, foram os filhos que imitaram. Depois, os netos. Era ter peixe para começar a sinfonia de tosses. Às vezes, o que faltava era espinho. 

A experiência trouxe novas histórias, viagens e motivos para sorrir. Os filhos já estavam formados, os netos adoravam suas brincadeiras – inclusive a prova de fogo da coragem: dar um pum embaixo da coberta e tapar a cabeça –, e Berta continuava linda. Ainda com péssimo gosto para homens, mas linda. 

Para comemorar 50 anos de casado, programaram uma viagem muito especial: queria conhecer a casa onde Chaplin havia nascido. No caminho, também valia conhecer um pouco da França e Itália. Por quê? Ora, Charles também havia passado lá. 

Passaporte em dia, passagens compradas, hotéis reservados, só faltava os exames de rotina. 

Quando o telefone tocou e a secretária do médico pediu que Paulo viesse um dia antes do combinado e, de preferência, sozinho, ele respondeu: 

Querida, vou correndo: notícia ruim vem rápido. 

Do outro lado da linha, não houve resposta. 

Sentado na frente do médico, Paulo ouviu com atenção os resultados dos exames. Sua tranquilidade era inversamente proporcional à gravidade do diagnóstico. 

Poderia levar um mês, três meses ou, no máximo, seis meses. Evidente que milagres aconteciam, mas o médico, a medicina, não podiam contar com eles. 

Foram quase 45 minutos ouvindo. Em momento algum, Paulo interrompeu o médico. Já ansioso, ele perguntou se Paulo tinha alguma dúvida, algum comentário. 

Paulo olhou para sua aliança, olhou para o médico e, gravemente, falou. 

- Creio que não devo comer peixe pelos próximos seis meses. 

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Conto


V-I-D-A

Ela era muito esperada. Depois de duas gravidezes que não deram certo, ter passado do terceiro mês já era um milagre. 

Na verdade, desde o primeiro mês, eles comemoravam. A decisão já havia sido tomada: eles não tentariam mais. As duas perdas foram muito doloridas. 

Da primeira vez, a alegria deu lugar ao desespero. O pequeno quarto estava praticamente montado. Faltavam detalhes: um quadro na parede, um ursinho no berço e, claro, um anjo de pano para proteger o anjinho recém-chegado. Foi exatamente quando escolhiam o quadro que uma forte pontada levou eles às pressas para o hospital. 

Fila. Senha. Maca. Grito. Sangue. Correria. Emergência. Meu filho, meu filho. Aborto. 

Depois de três anos, uma nova bênção. Agora, eles já sabiam o perigo. Todo o cuidado foi tomado. Repouso absoluto. Ela não precisava trabalhar. Ele dava conta, O quarto já estava pronto havia três anos. O pouco que faltava, eles comprariam aos poucos. O quarto ele mesmo pintara com a tinta que ela escolhera. A nova colcha ela mesmo costurara com os bichinhos que eles decidiram. 

Quando o telefone tocou no meio da tarde e ele reconheceu o número dela, seus olhos ficaram cheios de desespero. 

Sangue. Fila. Senha. Emergência. Grito. Correria. Meu filho, meu anjo, meu Deus. Aborto. 

A decisão estava tomada, eles não tentariam mais. 

Mas o susto veio. O que fazer? Adiantar o inevitável? Para que prolongar o sofrimento?

Depois de sete anos, a dor ainda era muito presente. A ferida não havia cicatrizado. Eles não aguentariam passar novamente por tudo aquilo. 

Porém, passaram pelo primeiro mês. Com receio, com sonhos, com um lindo quadro na parede. Pelo terceiro mês. Com desconfiança, com força, com pequeno ursinho no berço. 

E vieram o quarto, quinto e sexto mês. Com pavor, com fé, com internação. 

No sexto mês, a gravidez de alto risco tornou-se uma internação de emergência. 

Sangue. Grito. Fila. Senha. Correria. Meu filho, me ajuda, nos salva. Cesariana. 

A enfermeira caminhou até o fundo do corredor para encontrá-lo. Ela tinha perdido muito sangue. O bebê pesava menos de 700 gramas. Eles fizeram tudo o que fora possível. Ela não sobrevivera. Ela estava na UTI. 

Foram quase três meses na Unidade de Tratamento Intensivo. Todos os dias ele via sua filha pelos grossos vidros da incubadora. 

No quarto mês, uma infecção quase a tirou dele. No sexto mês, ela ganhou peso. No oitavo mês, ela ganhou seu primeiro colo do pai. 

Numa tarde ensolarada de uma terça-feira de novembro, eles saíram do hospital. Ele esperou estar junto dela para ir ao cartório registrá-la. 

- Qual será o nome dela? - perguntou o escrivão. 

- Vê - i - dê – a. Vida. Como a mãe.
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3º lugar - Eduardo Bizarro Pereira Porto


Miniconto

VENTANIA 

Sobre o mar acalmado, as naus flutuavam quietas. A calmaria era a morte. O capitão-mor rezava por ventania. Pronto estava para aguentar todo vento que viesse. E ele soprou; soprou e não parou mais. Trouxe as naves, a peste e a cobiça. E levou; levou ouro, prata e o que mais reluzisse. No fim deixou; deixou a morte, a vida, a desgraça e a esperança. Continuou soprando, nunca soube o que fizera.


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Poetrix

SONHAR 

Quero dormir e não acordar, 
Ser o senhor de todos os sonhos. 
Se não der certo, volto a sonhar.


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Poema Livre

AMOR 

O amor que amei primeiro 
- e muito correspondido - 
foi um sorriso e um seio. 
Tudo que tinha querido.
      Depois amei o meu pai, 
      amor que não tinha fim, 
      e do meu peito não sai, 
      a saudade que há em mim. 
Aprendi a amar a vida, 
mistura de muito e pouco. 
Uma surpresa infinita, 
para o são e para o louco. 
      Até os bichos amei, 
      também os livros que lia, 
      e as flores que cheirava, 
      o real e a fantasia. 
Enfim, amei os olhos dela, 
Cada amor é diferente. 
Tanto amor que dou p’ra ela, 
não tem fim esta vertente? 


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Crônica

HUMOR APROXIMA 

Tia Negra sempre foi muito bem humorada. Cedo teve que encarar a vida junto com a mãe e a irmã, abandonada pelo “chefe da família”. Aposentada e solteirona, seu maior medo era que descobrissem que reduzira em quinze anos a própria idade para ser admitida na antiga Viação Férrea, que então estabelecia idade máxima para admissão. Viveu com esse fantasma a assombrá-la, malgrado as tranquilizadoras explicações do meu avô, que era seu irmão. 

Além de bem humorada, era muito generosa com os seus, entretanto muito econômica consigo mesma. Economizava em tudo: se o doutor receitava dois remédios, comprava o mais barato, também mais barato era o sabão, e assim por diante. Também tinha o hábito de guardar os presentes que recebia, de Natal ou aniversário. Era comum não abrir os pacotes, na expectativa, quem sabe, de poder reutilizá-los em ocasião apropriada. 

Recentemente, Tia Negucha, outro apelido dela – pediu-me que a acompanhasse em um aniversário de uma amiga. Aceitei prontamente o convite, sem outra intenção, embora antevisse alguma cena pitoresca que a presença da Tia Negrinha – mais um apelido – está sempre a propiciar. 

Chegamos lá e a tia Inês – esse é o nome dela, embora nunca tenha ouvido alguém chamá-la assim – muito sorridente e afável, cumprimentou a aniversariante, e entregou-lhe o presente, dizendo: “desculpe a insignificância, é só uma lembrancinha”. 

A anfitriã abriu o embrulho, momento em que o seu sorriso passou do vermelho para o amarelo. Ela agradeceu, fazendo o que podia para não perder a linha. 

Fiquei sem saber o motivo do constrangimento, até mais tarde na festa, quando a neta da aniversariante confidenciou-me que o presente da tia Negritita – outro… – fora o mesmo que recebeu da anfitriã no seu próprio aniversário – da tia Negrinha – no ano anterior. 

A formalidade que até então havia entre a neta da aniversariante e eu se desfez, e rimos muito. 

Era como se o encontro dissonante daqueles dois antigos cristais, que nos eram muito queridos, ressonasse em riso duas gerações adiante. Até hoje comemoramos aquela data como o “nosso” aniversário. 

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Conto

IMPLACÁVEL SEDUTORA 

A vida nunca para. Ela força, luta, empurra, muda os planos daqueles que dela se embebedam. Para a criança que primeiro reconhece um rosto, sua mãe é o Universo, que nunca cessará de expandir, enquanto houver vida. 

Edmundo e Artur sempre foram bons amigos, desde quando aprenderam o significado da amizade. Estavam juntos sempre que podiam. 

Após as aulas, gostavam de ir para a “cidade”. Um forasteiro que ali chegasse, notaria a cidade deserta se os meninos não estivessem. Escondido no sopé de um barranco, cercado de espessa vegetação, o casario era baixo, feito com materiais de fortuna, ao longo de um arruamento irregular, mas construído com cuidado. 

Em um fim de tarde de outono, Edmundo e Artur subiram o barranco, sentaram na grama e ficaram admirando a cidade que haviam construído. Artur comentou: 

– No meu aniversário, vou pedir mais carrinhos. Toda casa terá um. 

– Vamos poder fazer até um engarrafamento – disse Edmundo. 

Eles riram e se abraçaram. 

– Então ela estará completa, poderemos dizer que concluímos nosso projeto? – continuou Artur. 

Edmundo, o mais velho, não respondeu, ficou pensativo. Sentia-se esquisito, parecia não entender mais a vida. 

No primeiro dia de aulas, sentira grande alívio quando soubera que Carmem Lígia seria sua colega de turma. Escolheu um lugar logo atrás dela. 

Ali sobre o barranco, sentado em companhia do amigo, Edmundo acariciava uma borracha de apagar lápis, que trazia no bolso; tinha o formato de uma flor o mimo que recebera de Carmem naquela manhã. 

Artur, talvez tomado de alguma apreensão ou pressentimento, perguntou ao amigo: 

– Vamos brincar de carrinho amanhã? 

Edmundo pareceu surpreender-se com a pergunta. Tirou a mão do bolso, levantou-se e respondeu. Mas não com tranquilidade ou displicência. O fez com aprumo, ênfase e decisão. Parecia contrariar o que já se arrebatava dentro de si mesmo: 

– Eu vou brincar de carrinho contigo para sempre. 

Quem lhe acompanhou os passos nos dias que se seguiram, percebeu que a vida, sedutora implacável, tinha outros planos para ele. 

Foi a última promessa que Edmundo fez na infância, e a primeira que descumpriu na adolescência.