23.2.16

Autores Gaúchos: Caio Fernando Abreu


No dia 25 de fevereiro de 1996, há quase 20 anos, falecia o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, nascido em Santiago em 1948. O Instituto Estadual do Livro publicou em 1975 seu livro de contos O ovo apunhalado, em coedição com a Editora Globo. Em 1995, o IEL lançaria ainda um fascículo da série Autores Gaúchos dedicado a Caio. Esta obra contém uma entrevista realizada por Roberto Antunes Fleck, Vera Aguiar e Charles Kiefer em que o autor discute sua visão de mundo e seu processo criativo. Abaixo reproduzimos alguns trechos:



Roberto – Quando escreves, a tua criação vem intuitivamente?
Caio – Eu ando sempre com uns caderninhos onde anoto sonhos e algumas frases ímã. O conto “Sem Ana, Blues”, do livro Os dragões não conhecem o paraíso, começou com esta frase – quando ela me deixou e depois que ela me deixou. Fiquei meses com ela na cabeça. Um dia botei o papel na máquina e escrevi a frase. De repente, eu já tinha uma história e sabia que ela era Ana e quem era o homem que ela havia deixado. Eu vou magnetizando coisas no inconsciente, coisas do dia a dia, coisas que magicamente as pessoas vão te dizendo. Isto vai formando um todo que acaba se tornando uma história redonda. Mas este programa todo é intuitivo.

R – Sem planejamento? Não planejas o livro? Nada?
C – No primeiro momento de escrever, é totalmente intuitivo. Depois vem o trabalho braçal. Os dragões..., eu reescrevi seis ou sete vezes, mas parti para o trabalho só depois que tinha a magia dele sob controle.

R – Quando escreves, tu procuras ser fiel à realidade?
C – Faço terapia há mais de dez anos e não consegui chegar a uma conclusão sobre qual é a minha realidade. Tem a realidade mental, a social, a realidade que é a soma de várias realidades. Não sei, a realidade é uma cebola cheia de capas. Talvez tudo o que eu vejo seja uma grande distorção das minhas emoções. Acho muito difícil definir o que é real.

R – A maioria dos intelectuais simplesmente nega a religião. Tu és um intelectual e estás à procura de Deus, caminhando em direção à fé. Como explicar isso?
C – Eu não me sinto um intelectual. Nunca me senti. Sou muito inculto. Eu não li uma porção de coisas. Nunca li Marx, por exemplo. Li Kant quando achei que tinha a obrigação de conhecer A crítica da Razão Pura. Achei um saco. Eu não tenho isso de me obrigar a ler coisas, pensar coisas. Sou mais Barthes, sou “barthesiano”. Vou pelas coisas que me dão prazer em leitura, cinema e música. Intelectual é mais aquele cara que se concentra, que tem uma disciplina mental.

(...)

Vera – Tu estavas falando na tua busca de Deus e que esta busca é intuitiva. Mas ela não será também um pouco pesquisa em cima de filosofias orientais?
C – Certas coisas se juntam de uma maneira tão inexplicável, que eu chamo isto de Deus. Dou um exemplo: quando estava escrevendo a primeira novela do Triângulo das Águas, aquela sobre o signo de Peixes, trancou o texto no personagem que se chama Pedro e representa o signo de Sagitário. Aí peguei ao acaso um livro da estante, abri e era García Lorca e era um poema sobre a constelação de Sagitário chamado “Poema de la saeta”. Incorporei o poema e o texto veio. Eu chamo isso de Deus, esta sincronia de que tanto Jung falava. Para mim Deus é isto, peças que se juntam meio que inexplicavelmente.

Charles – E tu não verias nisso um pouco do teu inconsciente?
C – Claro, o inconsciente é Deus. O inconsciente sabe tudo.

R – O que é ser humano para ti?
C – (...) Eu tenho refletido ultimamente se todos nós não estaremos nos transformando em simulacros do que a gente supõe que seria o ser humano: seres humanos sentam assim, cruzam as pernas, uma coisa meio esquizofrênica. Eu acho que o ser humano original está meio à deriva, como falei antes. A gente não sabe se está reproduzindo a personagem de “Mel e girassóis” quando ela rodopia como Doris Day ou se está imitando alguma coisa que se viu no cinema ou na novela das oito. A gente incorpora estas coisas e fica repetindo. Você perguntou o que é ser humano. A esta altura da poluição, a esta altura da fuligem cultural que já encosta na pele da gente, eu não sei mais.

R – Caio, tu tens a preocupação de te humanizar?
C – O tempo todo, e acho que é uma doença. Tem dias que trabalho até seis horas da tarde, tomo um ônibus, com aquela nordestina toda sofrida de São Paulo. Aí chego em casa, me jogo no sofá e choro. Choro de pena do país, de pena de mim, de pena de tudo. Mas também não sei se, ao chorar, não estou querendo me convencer do quanto eu sou bondoso, compreensivo e nobre.

V – Caio, a forma vem antes do conteúdo para ti?
C – Não, sempre vem junto. Cada história já vem com uma forma. Não consigo começar a escrever alguma coisa da qual não tenha a primeira frase. Esta frase, depois de uma reescritura, pode até cair fora, mas ela sempre traz o clima, já tem alguma canção, algum espírito. Muita gente diz que estou caminhando para o vazio, que estou escrevendo cada vez mais sobre o nada. Quem dera! Tenho relido Beckett. Se eu estiver caminhando para aquele tipo de vazio, seria uma maravilha.