2.7.15

Eu quero ser você
Guilherme Smee


Eu quero ser você. Pra saber das coisas que você sabe e experimentar as coisas que você vive. Mas eu sei que isso é impossível. Não posso me livrar dessa carcaça a que estou ligado. Não posso deixar de lado minha visão de mundo, minha mesquinharia, meu egoísmo. Tem vezes que quero arrancar a pele, deixar a alma livre, pra quem quiser pegar e experimentar ser como sou. Mas antes eu queria ser como você, me libertar das minhas experiências, ver a mim mesmo não como um espelho frio, mas com a paixão de um humano. Queria cuspir em mim mesmo, pisar no meu calo mais doído, rir das minhas piadas sem sentido ou que só fazem sentido pra mim mesmo. Queria ver o quanto sou feio e o que de bonito eu tenho para oferecer aos outros. Mas ainda não sei o que é ser eu mesmo. A experiência da vida não é suficiente. Nem completa. Não enquanto eu não souber o que o mundo acha de cada segundo que passo nele. 


Eu já tentei ser outras pessoas. Cravei uma caneta no meu coração e o sangue que escorreu sobre o papel não era meu. De vez em quando, eu tento me colocar no lugar dos outros. Chamam isso de empatia. Mas é pura enganação. Ninguém sabe se colocar no lugar do outro, a não ser no seu próprio canto imundo, sujo de suas próprias atuações, que os livros e as músicas costumam chamar de vida. 


Nessa tentativa eu enlouqueci. Deixei minha personalidade no deserto, dobrada e emaranhada dentro de uma caixa lacrada debaixo da cama de Cérbero. Ouvi as minhas palavras que não me pertenciam, mas que já vinham fazendo parte do que eu comecei a me tornar. Comecei a repeti-las para ver se a experiência se modificava, mas no fundo a voz era a mesma. Então eu vesti roupas diferentes das que costumava usar e fui para a rua achando que era uma outra pessoa, mas eu só podia esperar as mesmas coisas que aconteceriam se fosse eu mesmo. Passado, presente e futuro são uma coisa só: expectativa. 


Meus pés continuavam no chão. E todas as vezes que chorei vendo cenas terríveis foi por mim, não foi por ninguém mais. Se estava chorando foi porque experimentei um pouco de mim mesmo na pele de outra pessoa. Eu não aprendi a amar outras pessoas, foram elas que se colocaram na minha frente repetindo coisas que eu achava tão familiares, que eu achava bonitas quando me olhava no espelho e só via elas mesmas. 


A vergonha é um sentimento egoísta, mas todos eles não são? Porque eu nunca vou sentir vergonha como você, mesmo quando você a sente por mim. O sangue sobe até as bochechas e nos ruboriza porque queremos fazer aquilo que nos envergonha, mas não temos coragem de admitir. 

Nem para nós mesmos. E quando não sabemos interpretar nossos próprios sentimentos, como podemos exigir que os outros tenham essa visão? 

Somos todos iguais, alguém disse. Não somos porcaria nenhuma. E quando eu for você, estarei preso. Só o mundo é livre. Só ele consegue abranger todas as experiências e viver por completo. Porque a energia, e nisso eu acredito, se transforma. Eu um dia serei você e e você será eu. Você viverá meus dramas, mas não conseguirá olhar para o lado e ver que você sofre também. Porque você é limitado. Uma parte do todo contribuindo gradualmente para o fim do mundo. Você só conseguirá ser o outro quando beijar na boca e não sentir a própria língua. Quando brincar de pegar sem os braços. Quando chorar e a tinta da caneta sair de seus olhos, rolar pelo seu corpo e escrever uma nova história.



Do livro Vemos as coisas como somos (IEL/Corag, 2012)