21.7.14

A mulher vigiada
Paulo Bentancur

(Texto de Paulo Bentancur, escritor e crítico, sobre o romance O amante alemão (IEL/Corag, 2013), de Lélia Almeida. A obra, vencedora do Prêmio Açorianos de Literatura 2013, terá sua segunda edição lançada em breve pelo Instituto Estadual do Livro em parceria com a ediPUCRS.)





Lélia Almeida, como muitos de nós, deve ter lido Balzac. No entanto, como poucos, soube absorver a lição de um romancista que, ao contrário da maciça maioria dos clássicos do Realismo, não se contentou em “simplesmente” fazer uma longa viagem de excursão à psicologia de seus protagonistas. Com Balzac, independente do perfil idiossincrático de seus heróis e anti-heróis, há a composição de uma espécie de psicologia do coletivo, que tanto abarca um grupo social como, mais que isso, a própria comunidade inteira em que esses seres se movem. No romancista francês, mestre insuperável em seu tempo, o meio nunca é desperdiçado apenas como cenário, mas comparece também como presença e traz sua marca de comunidade a antecipar os tipos que nela brotam, influenciam e são por época e lugar influenciados. Temos, assim, uma espécie de historiador ficcionalizando.

Eis a grande, a inédita contribuição de Lélia Almeida com seu alentado romance O amante alemão. Flagrando o cotidiano de uma cidade gaúcha do interior, mas polo educacional e desenvolvimentista, de economia fumageira, de forte influência da colonização alemã – cidade em razão disso marcada por um imaginário tenso, onde suicídios e moralidade vigiada dão as cartas do azar –, a escritora realiza um mosaico exuberante, ainda que alicerçado numa história particular de relação extraconjugal. “História particular”? Nesse terreno pantanoso, no qual todas as vozes sussurram mas o fazem não por delicadeza, porém por velada ameaça, autêntico estado policial praticado por civis de perspectivas estreitas, nada pode impor-se com a provocadora condição de sua particularidade. Eis o enorme desafio a que se propõe esta ficcionista que estreou no final dos anos 1980, com a novela Antônia.

30 anos depois...

Três décadas de trajetória literária amadureceram um projeto estético coerente, já anunciado na estreia. O mundo secreto das mulheres versus o mundo estrondoso dos homens. Tempestade e ímpeto, para lembrarmos a semente do Romantismo em plena Alemanha do século XVIII, o Sturm und Drang. Lélia publicou, sucessivamente, livros que faziam eco às relações perigosas que flagrava. O amante alemão atinge o ápice desse flagrante.

É narrativa caudalosa, inoculada tanto de desejos quanto de venenos. À batalha amorosa, que não se trava sem disputas, sem estratégia, paciência e um amor que não conhece conforto algum, soma-se a batalha travada entre a amante e não apenas a rival, mas, mais que esta, a intensa rivalidade blindada contra qualquer defesa – a rivalidade de um meio no qual nenhuma liberdade floresce.

Fundamental realçar: o romance de Lélia contém outro romance, mas não é lícito ao crítico dar-nos a chave e sequer a hora em que surge. E para quem ela, Duzília Flores, personagem inesquecível e autora também, o entrega com uma dedicatória das mais definitivas.

Madame Bovary e Ana Karênina, trágicas heroínas do século XIX, que pagaram com a vida o amor assumido, são as tataravós dessa mulher que Lélia Almeida, em O amante alemão, coloca como espinha dorsal a sustentar uma obra de exceção. Aqui se fecha o ciclo da autoflagelação. E se a cidade permanece como cenário resistente à libertação promovida pela funda e apaixonada procura individual, em si mesma permanecerá.

Até que uma sucessão de Duzílias, com o passar das épocas, mude esse cenário canhestro, apequenado e apequenador. O surgimento de uma artista da palavra capaz de registrar esse movimento tão emblemático, essa resistência e emersão, fazendo vir à tona o que de fato faz um peito estalar, contra toda a mesquinharia cultivada num discurso que antes ensurdece que revela, é um passo à frente na literatura contemporânea. O mesmo que Balzac, há 170 anos, suspeitava e tratava de sugerir. Lélia Almeida cumpre hoje esse futuro anunciado.

Resenha publicada originalmente no jornal Correio Brasiliense.