25.10.13

Toda a novidade do mundo
Altair Martins

Pois estando seus filhos casados e espalhados pelo mundo, sentiam-se pais já cumpridores de algo nobre, mas dolorido. E foi assim que se mudaram para uma praia distante de qualquer civilização. Passando dos cinquenta anos, com a sensação de já terem dito tudo, buscavam a paz de um lugar onde não fosse preciso nem mesmo falar.

A casa que compraram por um anúncio de jornal era a única num raio de 75 km. Era de madeira, com três quartos, e através das janelas se viam serra e mar. No passado, havia servido como um posto de observação de aves migratórias que (nunca se descobriu o motivo) não mais voltaram à região.

Numa visita externa, aceitaram tudo na casa – do mato espesso ao redor às pedras da serra e ao vento úmido do mar – como o necessário para que mudassem de perspectiva sobre si mesmos, e tudo recomeçasse depois dos filhos. A princí­pio, usariam o carro apenas uma vez por semana, quando viajariam por duas horas até o mercado da cidade mais próxima, retornando com mantimentos.

Compreenderam que viver ali era sem meios-termos: aprenderiam a matemática do lugar e viveriam o mais simples possível; estavam, enfim, em um dos poucos locais onde o dinheiro nada valia.


Então chegaram no domingo, sob um sol intenso. Era o primeiro dia de toda a novidade a que se propunham. E, apesar do medo de uma compra no escuro, encontraram todos os móveis tal como foram anunciados. Não mencionados pelo jornal nem pela imobiliária eram os quadros de pássaros migratórios e uma luneta de observação, à janela norte, equipada com tripé articulado e bússola.

E desfizeram a única mala e uma sacola de pães e biscoitos, frutas e legumes. Além disso, apenas garrafas d’água. E ele montou as carretilhas para que, à tarde, descessem as encostas e experimentassem pesca. A ela coube o reconhecimento doméstico da casa.

Almoçaram dois sanduíches já prontos. Vez em quando, ela o olhava como a perguntar: E conseguiremos? Então ele mastigava com tranquilidade, e ela entendia que tudo parecia realmente novo.

Foi que, após a mesa, viram o sol que atingia o soalho tornar-se menos denso. Chovia. E forte. Não havia luz elétrica na casa, e tampouco lhes passou pela cabeça trazer velas. Por isso, pela janela, viram o mundo despencar. Divertiram-se com experimentar a luneta, identificando apenas borrões no horizonte.

De nítido, ou quase, avistaram o pinheiro, ponto máximo da serra. E, como estavam cansados da viagem, foram deitar. Dormiram conversando coisas sobre os filhos e seus lugares num mundo onde a tempestade alcançava.

No segundo dia, acordaram tarde, sob a mesma chuva intensa. E perceberam coisas demasiado estranhas: tinham dormido de roupa, com todas as janelas e portas abertas. E riram intimamente de tudo aquilo, pois que adentravam um mundo sem chaves. Ademais, sentiam-se enjoados, com impressões de que tudo ao redor balançava – efeito provável de dormir numa cama estranha. Ficaram deitados a manhã toda. Só ele vomitou.

Não sentiram fome nem à tarde, quando a escuridão chegou cedo. Ele acendeu com dificuldades o fogão a lenha e pôs a esquentar água com que a mulher faria café. Ainda enjoados, beberam e comeram pouco. Depois puseram-se a mudar móveis e objetos de posição, demonstrando a necessidade de que a casa se adaptasse aos novos donos. Esperavam que a chuva cessasse para reconhecer o mundo fora da casa. Mas, com a luneta, ele observou apenas a mancha cinzenta dos horizontes. Foi quando a mulher lhe pegou no braço, estarrecida, e o puxou a ver o mundo, não o borrão distante, mas o ao-redor: não havia serra nem mar; por toda a volta, estendia-se uma lâmina de água que só não era plácida porque a chuva forte lhe dava efeitos de poeira. Entenderam a casa à deriva, porque era possí­vel divisar, sem a luneta, a ponta do pinheiro no alto da serra encoberta.

Antes do anoitecer, a mulher foi deitar horrorizada com o que viu: pela frente da casa desfilavam peixes mortos de todas as espécies. Alguns ainda se debatiam sobre a folha d’água.

No terceiro dia a chuva não havia cessado. O mundo já amanhecera escuro, e eles tinham um buraco no estômago. Comeram biscoitos, enquanto ele tentava identificar um horizonte, ajustando o foco da luneta. Constatou em todas as posições o mesmo mundo de água. À exceção do pinheiro, que passava a sensação de estar mais próximo ainda.

À tarde, quando sentiram que era difícil descobrir qualquer coisa, a mulher encontrou um rato que tentava escorrer para o banheiro. Soltou um grito que não era palavra alguma, e o marido o perseguiu até perdê-lo na torrente e perceber que a água estava cheia de ratos que nadavam, desorganizados, uns sobre os outros, mas na mesma direção norte. Muitos apenas boiavam, os afogados daquela enchente.

Fecharam todas as entradas da casa, menos a janela da luneta, e o homem buscou, sem achar, o destino dos ratos. Entendeu, pelos olhos de horror da mulher, que eles buscavam o pinheiro. Dormiram como que hipnotizados pela marcha uniforme da chuva, depois de bloquearem todas as frestas com bolas de tecido feitas de peças de roupas.

No quarto dia a chuva não havia cessado, a mulher acordara chorando, e o homem notou apenas que o dia estava mais claro. O sol, acima das nuvens, deveria ser intenso. Comeram frutas e combinaram que não abririam janela alguma da casa.

Mas à tarde a claridade parecia mais intensa pelas frestas mínimas, e algo de ruidoso passou a sensação de que pessoas batiam às paredes, pedindo socorro. Tentaram evitar o que ouviam, mas dali a pouco também passaram a perceber gemidos, e ele se levantou julgando que precisavam encarar tudo. Então abriram a casa.

Desfilavam, cobrindo a superfície da água, garrafas plásticas de todas as cores e tamanhos, de refrigerante, detergente, óleo automotivo, suco de frutas, alvejante, cera de assoalho.

Pela janela norte, o homem viu que a travessia das garrafas se estendia de horizonte a horizonte, em intenso movimento, como se, não havendo espaço para todas elas à folha d’água, fizessem um verdadeiro balé de revezamento. Só o pinheiro mantinha-se visível a balizar o destino provável da marcha. Lembrando-se de que haviam trazido uma garrafa de vinho tinto, beberam, discutindo a posição dos quadros remanescentes do posto de observação. Foram assim até um sono mole.

No quinto dia a chuva não havia cessado, e a mulher, acordando antes dele, abriu as janelas para se deparar com uma travessia bizarra de gaiolas com pássaros vivos, todos silenciosos, como que impactados pelo milagre de boiarem sobre a morte.

Com as mãos dormentes, acordou o marido, que buscou a luneta para examinar o horizonte no qual se movia a procissão de penas. E o pinheiro. Não tinham fome, mas comeram pão ressuscitado sobre a chapa quente do fogão. Usaram uma cadeira como lenha.

À tarde, mudaram novamente os móveis de lugar. Ela redescobriu o crochê, e ele tentou pescar com bolas de pão. Escondiam-se ambos da consternação a dois. Antes que viesse a noite, puseram-se na cama. Se fosse possível dormir sem fechar os olhos, teriam descoberto como.

No sexto dia, a chuva ainda não havia cessado, e eles estavam moídos, sem ânimo de levantar e abrir as janelas ou cavoucar horizontes pela janela norte, e então ficaram em silêncio.

Mas os sons do mundo, apesar de sujos pelo ruído da chuva, revelaram coisas enormes a cruzar ao lado da parede do quarto, deslocando a água com brutalidade. E era a vez de ele abrir a janela.

Lentamente, uma caravana de automóveis emborcados se movimentava com mínimos toques transferidos de um a outro. Havia ônibus e caminhões. E, entre eles, motocicletas. A julgar pelos pneus, pareciam todos novos, mas talvez fosse o efeito da máscara que a chuva estendia entre os veículos e a casa. Ele nada disse à mulher e resolveu observar o desfile de soalhos e rodas que terminou seu fluxo somente à tarde. E então postes de madeira e de concreto, puxando fios, também navegaram na mesma direção do pinheiro.

Tomaram sopa de algumas batatas e uma cenoura. Anteciparam a noite deitando cedo. Antes, trocaram de posição na cama. Dormiram cochilos esparsos.

No sétimo dia, já não faziam questão de abrir a casa. Mas nesse dia a chuva havia cessado, e eles não perceberam. Não diziam nada desde o sexto dia de torrente. E então a mulher lhe revelou que não poderia mais dormir, porque pensava fixamente nos filhos sendo tragados pelo redemoinho de um imenso ralo. Ele confessou que sentia o mesmo, sem pesadelos figurativos apenas, e com a única sensação nos nervos de que a casa estava afundando. E depois ficaram abraçados durante muito tempo. Pensaram nos dias seguintes e sobretudo neles mesmos, cercados pelas águas do mundo, e definhando, e preferiram a sensação de naufrágio da casa. Conversando assim, foram quase toda a manhã, até que se sentiram enjoados novamente. Ela primeiro: abriu a porta e, de olhos fechados, num pacto de evitar o mundo, arrevessou apenas água. Depois ele: vomitando o que  parecia lhe vir dos pés, ficou olhando o mundo agitado onde nada mais surgia e demorou para perceber que as chuvas tinham cessado, e a água enfim começava lentamente a baixar.

Arrastou a mulher para que ela visse, e ela viu, ficando de joelhos com mãos de reza.

Ele correu à janela norte e avistou o pinheiro, muito comprido, e os galhos secos os fizeram julgar que a árvore havia morrido afogada. Ficaram acompanhando o esvaziar do horizonte até anoitecer. Dormiram de cansaço e de esperança. E conversaram sobre o mundo novo, depois das águas, e sua aparência provavelmente cintilante.

Então, no oitavo dia, foram mesmo acordados por ruídos altíssimos que cruzavam a casa, e, quando abriram as janelas, a água havia sumido de todo. No seu lugar, por todos os lados, brotara um mundo novo, com ruas largas e postes imensos. Um semáforo fazia os automóveis buzinarem parados na frente da janela norte. Havia fuligem no ar e fazia muito calor. Não precisaram de lunetas, pois já não havia horizontes. De parte a parte, erguiam-se, com placas de todas as novidades, edifícios pesados, modernos, que retinham o sol intenso. No mais alto deles, avistaram uma antena em forma de guarda-chuva fechado. E os dois voltaram para dentro, vestiram as roupas de quando chegaram àquela casa e, empunhando as fotografias dos filhos, saíram perguntando se alguém os conhecia.

Do livro Enquanto água, vencedor do Prêmio Moacyr Scliar de literatura 2012, republicado em edição especial pelo IEL e pela Corag (2013).