15.10.13

Mãos dadas
Márcia do Canto



Capa: Roberto Schmitt-Prym
sobre concepção de Martina Schreiner
Querida amiga,

Quanto tempo, não?

Lembro-me de ti criança, cabelo solto encaracolado, que tu insistias em colocar atrás das orelhas. Mas ele, rebelde como tu, não ficava. Tu sempre tão decidida e com tanta iniciativa. Admirava-te muito. Segues comigo até hoje — lembranças das brincadeiras no pátio da escola, dos desenhos em aula, da tua voz clara e firme chamando os colegas. Menina forte e determinada como nunca fui. Lembro-me de uma situação, uma cena que ficou gravada na minha memória e que me visita de tempos em tempos, como ondas do mar, que vão e vêm sem cansar de fazer o mesmo movimento, seguir o mesmo percurso.

Nós brincávamos no pátio, atividade que fazíamos com bastante frequência, nem sempre com a participação da professora. Naquele dia, ela, linda e doce, nos chamou para brincar de roda. Com destreza e agilidade, cheguei rápido e peguei sua mão. Eu consegui. Pela primeira vez, eu estava na roda ao lado dela, da nossa professora. Local privilegiado. Lugar dos mais amados, dos bem comportados, dos mais corajosos e audaciosos. Tudo o que eu não era. Tudo o que eu queria ser. Instante de prazer e glória. Estava no céu. Eu consegui!

Tu vieste até mim, minha melhor amiga, e exigiu o meu lugar. Eu havia obtido o maior de todos os tesouros, e tinha sido por mérito, esperteza, sorte, sei lá. Aconteceu que, naquele dia, eu consegui segurar a mão da minha professora e tu, sem o menor constrangimento, exigiste o lugar. Não tive escolha. Dei a ti minha maior conquista. Como um tigre faminto e exausto, abandonei minha presa logo após o golpe fatal. E saí vendo o último suspiro da minha caça. Não suportei a vitória. Não me permiti vencedora.

Querida amiga, certamente não te lembras deste episódio, pois para ti foi apenas mais um dia. A tua conquista não teve a importância da minha recusa.

Tive muita raiva de ti. Este passou a ser o símbolo da minha covardia e, mesmo parecendo paradoxal, ponto de partida para minhas conquistas. Não ter deu-me o direito de ser.

Esta carta não é uma queixa, minha amiga. Hoje, sigo tímida para falar em público e continuo com dificuldade de ter muitos amigos. No entanto, minhas mãos cresceram e pluralizaram meus caminhos. Com elas, embalo, acaricio, contenho. São suporte e acalanto. Crio e escrevo, e minhas palavras tornam-se mãos que se irmanam às de nossa professora do primário. Nem em sonho saberias a mão que me deste.


Do livro Prosa na Estrada – Vol. I (IEL, 2013). Publicado originalmente em Santa sede (Fábrica de Leitura, 2011).