3.9.13

Uma vista para os jardins de Arlete
Cleo de Oliveira

Texto selecionado no projeto Prosa na estrada, cuja versão em e-book será lançada nesta quinta-feira
Capa: Roberto Schmitt-Prym
sobre concepção de Martina Schreiner


Que cuidasse bem dos jardins e do cachorro: foram os desejos de Arlete antes de partir. Dócil e soberana em nossa relação, ela ocupava os espaços possíveis. Por anos, minha autonomia definhou cumprindo suas ordens com dedicação. Sigo meu caminho agora. Seria simples fingir que não ouvi seus pedidos. Não é o que farei. Esquecerei as agruras e os realizarei, como uma homenagem.

Os jardins se salvaram. Mas Apolo, o dálmata, não assimilou bem a perda. Sobrevive com um caminhar fiel e cabisbaixo. Três dias sem comer, fazendo travesseiro das patas. Vagando por todas as peças, desconsolado. Aninhou-se ao meu lado no sofá, aceitando um pedaço de bife. Senti um alívio. Não estava preparado para um novo velório. No dia seguinte, comeu um bocado de omelete do meu prato. Passei a colocar sua comida num prato idêntico, que era o de Arlete. Alcançava a mesa amparado por duas cadeiras.

Apolo não dormia. Descobri que sofria com a claridade do quarto. Ofereci-lhe a máscara de seda, outra herança de Arlete. Ela também tinha problemas com a luz.

Na madrugada, ouvi rosnados ao lado da cama. Seus olhos tinham sede. Mostrou-me uma dentadura de punhais pequeninos. À medida que eu me afastava da cama, ele ia se acalmando. A sala de televisão passou a ser o meu quarto. Pobre Apolo, a perda lhe abalara os instintos.

A banheira de hidromassagem era um deleite meu e de Arlete. Sensação de retorno à calidez do útero materno. Apolo também descobriu esse prazer, selecionando meus sais de banho com astúcia. É um descanso merecido. Não tiro sua razão; ameniza o sofrimento.

Nos últimos tempos, não tolera minha presença à mesa, mas isso é irrelevante. Com a vida atribulada que levo, acabo fazendo as refeições fora de casa. Desde que ele se alimente bem, eu fico satisfeito.

Ultimamente, se interessa por leitura. Devora a biblioteca de Arlete com olhos curiosos. Consumiu Ana Karênina em cinco dias. Sabendo que eu tinha alguma vocação, exigiu-me que escrevesse para ele. Histórias de animais, ele queria. Indiquei-lhe A revolução dos bichos. Custou-me uma semana de cativeiro neste quarto. Daqui, tenho uma excelente vista da rua e posso inclusive ver os jardins de Arlete, em frente à casa. Monótono, mas não me queixo. Precisava de um tempo para mim. Sexta-feira saio daqui, direto fazer minhas vacinas. Pedi uma tosa também, mas ele sugeriu que eu me livrasse dessas vaidades.


Do livro Prosa na estrada – vol. I (IEL, 2013)
Publicado originalmente em Descontágio (Scortecci, 2008)