19.6.13

Será que é o contrário a vida da atriz?
Vera Karam


Personagem 
Atriz 


Uma atriz em seu camarim se prepara para entrar em cena.



Falta uma semana pro meu aniversário. Todos os anos me surpreendo com isso. Por que de novo? Também, mal a gente se acostuma com uma idade, pronto, já é outra. Parece que depois de uma certa época da vida da gente, aniversário não é mais festa: é lembrança dos tempos em que os aniversários eram sinônimos de festa. (Cita Fernando Pessoa.) “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...”. Bom, mas ainda bem que eu estou com essa peça em cartaz. Isso é ou não é uma forma de festa? Ainda mais lotando todas as noites! (Bate na madeira.) Se não fosse isso, já me dava vontade de ficar em casa, me enroscar embaixo das cobertas comendo bombom e encarando qualquer coisa na televisão. E ainda rezando para que nenhum amigo bem intencionado venha interromper. É assim que eu sou. Gosto de gente e de solidão. Adoro o público mas, às vezes, não suporto o “privado”. Ficar “a sós com alguém” na vida real é uma coisa que, muitas vezes, me apavora. Na vida real, esqueço o texto, as marcas; não sei o momento certo de entrar ou sair de cena. Acho que se deveria ter sempre um roteiro à mão pras horas em que a gente não sabe o que fazer ou dizer. E quem não me conhece muito bem acha impossível que isso aconteça também comigo. Devo ter alguma coisa em gêmeos! Não é que eu não seja “nem uma coisa nem outra”. O problema é que eu sou as duas! E com igual convicção em cada uma! 


II 

Adoro chegar bem cedo aqui, só para ter mais tempo para ficar pensando. Quando eu ainda vivia com o Bruno, ia bem cedo pro teatro pra fugir da bagunça lá de casa. Tinha uma leve impressão de que ele me sugava. (Imita-o.) “Ai, negrinha, o que te custa ir na lavanderia? Tu só trabalha de noite! Eu sim, sou um escravo do horário.” “Mas meu anjo”, eu dizia, “uma atriz precisa se exercitar, fazer coisas durante o dia que aprimorem o seu trabalho à noite”. Ele não entendia. Achava que lavar pratos era mais do que bom em termos de exercício. Quem sabe eu até não usaria essa experiência enriquecedora, essa relação estreita que eu tinha com o “minerva plus”, quando fizesse papel de dona de casa? “Mas Bruno, tu acha mesmo que algum dia vão me dar papel de uma dona de casa? Dessas que têm filho e limpam as mãos no avental e, quando se inclinam para servir a papinha do filho, um decote generoso deixa entrever os fartos seios? Francamente... Seria abusar dos progressos da ciência”!... 

Ele morria de rir, me achava engraçadíssima! Decididamente, ele não me levava a sério. Achava que eu estava sempre representando. E não é que eu não estivesse. Afinal, o próprio fato de eu viver com ele e formarmos um casal não era uma representação? Com a diferença de que eu levava a sério o papel e ele era um canastrão. Fui obrigada a cancelar a temporada por falta de empenho do ator que contracenava comigo. O cenário ficou todo comigo. Afinal, fui eu, praticamente, a produtora durante seis anos. E sem patrocinador! (Muda de tom: sonhadora.) O pior é que, de vez em quando, me pego com sonhos de uma remontagem. Bom, quem sabe, né? Com algum outro ator mais talentoso, mais “empenhado” no seu papel?... Afinal, em teatro tudo é possível! 


III 

Às vezes, tinha vontade de estudar mais. Queria saber mais coisas. Tem gente que diz que ator não pensa. Não concordo, mas o problema é que, quando eu começo a pensar em alguma coisa, logo começo a imaginar que estou dando uma entrevista sobre o assunto e, em seguida, uma parte de mim está pensando no que eu diria e a outra – desculpe a franqueza – está pensando no que eu vestiria na ocasião... Eu estaria com ou sem maquiagem? De vestido ou um “jeans surrado”? Quem sabe o cabelo puxado? Usar óculos daria um ar de seriedade, mas eu não tenho nenhum problema nos olhos. Por enquanto... 

Fico pensando no que eu seria se não fosse atriz. Psicóloga, talvez... Acho que eu daria uma boa psicóloga, afinal, eu adoro gente problemática... Bem vamos ver o que me diz o Fernando... (Pega o livro de Fernando Pessoa, abre ao acaso, lê.) “Todo este país é muito triste. Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe. Muitas vezes eu não fiava: olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse.” (Fecha o livro, encara o público com ares de “tá pra ti?”) 


IV 

Ontem um gordo na plateia riu numa hora em que não era para rir. Me deu raiva! E risada de gordo, vocês sabem, é contagiante. Fiquei com raiva do gordo, mas depois passou. Afinal, qualquer pessoa, gorda ou não, tem o direito de rir na hora que quiser. Sou mesmo meio “de lua”, como dizia a minha mãe. Mas não pensem que todas as boas atrizes são assim. Existe também gente “tranquila” nesse meio. (Começa a contar nos dedos, como quem está tentando se lembrar. Desiste.) Mas eu, às vezes, tenho vontade de parar o espetáculo no meio e perguntar: “Por que não ficaram em casa, hein? Por que não ligaram todos para cá, de tarde, avisando que não vinham?”. Mas ia ser pior, muito pior. Prefiro ter essa gente toda me olhando o tempo todo, do que não ter ninguém me olhando. E se é pra olhar, é melhor que seja no palco, mesmo. Pior é quando eu tô sem trabalhar e tenho que dizer as mesmas coisas, fazer as mesmas cenas; dizer gracinhas, ter tiradas interessantes e bem humoradas, no Lugar Comum, no Copacabana, no Bar do Beto. E não posso nem cobrar ingresso! 



Não sei. Tem alguma coisa me incomodando, desde hoje de tarde. Vai ver, é a minha lua em peixes que me deixa tão arrasada por um comentário baixo qualquer. Tenho vontade de sentar no meio-fio e começar a chorar. Ou dizer simplesmente: “Vamos parar? Vamos parar porque eu vou acabar ficando triste”. Mas não! A gente não diz isso. A gente logo pensa em uma resposta mais afiada ainda, para rebater, como se tudo não passasse de um laboratório de diálogos mordazes. Mas foi demais quando hoje, na reunião, a mulher do Ruy me vem com aquela de que esperava que dessa vez eu levasse as coisas a sério... Francamente! Tudo bem, eu tive alguns probleminhas da última vez em que trabalhei com eles. Mas, meus amores, a Billie Holiday também teve “alguns probleminhas” e era uma grande cantora. Mas é exatamente esse o problema dela. Não o da Billie, o da mulher do Ruy. Inveja! Ela pode ser mulher do diretor, mas nunca vai ser uma atriz. Não é, nunca vai ser e tem raiva de quem é. 

É, uma atriz como eu deixa os outros inconformados... 

Meu Deus! Tá quase na hora! Me passou uma ideia horrível pela cabeça agora: e se hoje, justamente hoje, não vier ninguém? Se tiverem resolvido todos, de combinação  um verdadeiro complô mesmo, como eles costumam fazer de vez em quando   ficar em casa, enrolados em cobertores, comendo bombons e vendo televisão? Afinal, eles têm esse direito. O direito de ir e vir e até de não ir e não vir. Ou, pior ainda, se vierem mas chegar na hora “H” e eu descobrir no meio de uma fala que não sou uma atriz? Se não rirem na hora que espero que riam, não se emocionarem quando espero que se emocionem? (Vai ficando nervosa.) Se tossirem, se dormirem, se roncarem, bocejarem? Impossível que, em pleno fim do século 20, não tenham inventado uma maneira de prever, de  por que não?  controlar a reação do público. Pensando bem, acho que por precaução, a gente deveria distribuir um folheto para o público, com instruções: 


 cena um: sorrir; 


 cena dois: rir mais alto; 


 cena três: dar gargalhadas, seguidas de gritos; 


 cena quatro: suspirar, profundamente comovido; 


 cena cinco: ir às lágrimas; 


 cena seis: chorar convulsivamente. 


Não seria mais seguro? Bom, tá, vocês vão me dizer que se eu estivesse realmente procurando segurança estaria fazendo outra coisa, menos teatro. 

Vocês estão certos. 

Antes de entrar, vou consultar, mais uma vez, o meu I Ching particular: (Pega o livro de Fernando Pessoa de novo.) (Lê.) “Ah, e agora, e agora... Sim, acordou alguém. Há gente que acorda. Quando entrar alguém tudo isso acabará. Até lá façamos por crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo. É dia já... vai acabar tudo. E de tudo isso fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho...”. (Fecha o livro.) 

Está na hora. Vocês me dão licença...



Peça publicada em Vera Karam: obra reunida (IEL/Corag, 2013).