7.2.13

Celso Gutfreind no Autor Presente

Recebemos o seguinte depoimento do escritor Celso Gutfreind sobre sua participação no Projeto Autor Presente em Canoas:


"Eu fui à Vila de Passagem, um assentamento de famílias, no bairro Rio Branco, na Grande Porto Alegre. Levou-me um acordo entre os governos estadual e municipal. Pelo estado, Instituto Estadual do Livro. Pelo município, a Secretaria de Canoas. 

A Vila de Passagem é numerosa, repleta de famílias pobres. Há muito cachorro, carrapato, galinha, passarinhos, piolhos. Contei dois carrapatos, na volta. Subiam à direita do meu jeans. Detalhes ínfimos diante do essencial: as crianças. 

Há um auditório de tapumes no meio das habitações improvisadas. As famílias estão meio amontoadas, enquanto esperam as casas definitivas. Elas estão quase prontas, ao lado dali. As crianças estudam em escolas públicas. Estão de férias. É fevereiro. Faz muito calor. Não há ventilador em suas casas. Ar condicionado, tampouco. Há tráfico de drogas. Violência, tédio, falta do que fazer. 

Não para as crianças. Encontro-as agitadíssimas, com a Maria Pepe. A Maria Pepe contou minhas histórias para elas. Elas me esperam como são. Com a mesma verdade que tentei por nos livros. Somos semelhantes, reunidos pela verdade. Elas estão agitadas da verdade e do calor. Eu também. Mas calor e excitação nenhuma nos tiram dali. As crianças variam de idade, desde bebês a adolescentes. Os adolescentes cuidam dos bebês. Há um cachorro no recinto, e começamos a contar. 

O tempo de atenção é curto. Mas todos prestam depois que emprestamos as nossas. O cachorro (com os carrapatos) também presta. Improvisamos uma bola no meio das histórias. Somos contadores, animadores, temos histórias e esperança. Propomos um teatro da vida, e elas entendem. Entram na cena, cantam pagodes, fazem perguntas, de vez em quando se batem, mas somos firmes na ternura e logo retomam a história. 

São crianças pobres, bonitas, sensíveis, inteligentes. Entenderam que nas histórias não se bate. Bate-se muito mais através do que se conta. Querem saber a minha idade e anuncio meio século. Perguntam a da Maria Pepe, e ela não quer dizer. Então, invento a dela, mas não precisava. Eles entenderam que estamos ali para aprender a inventar. 

Para aprender a imaginar no meio do inóspito. Sabemos do inóspito, porque somos humanos e não precisamos ter cuidado de bebês na adolescência ou sofrer calor e frio a vida inteira para entender. É o que querem de nós, que a gente os entenda e se ocupe deles enquanto seus pais não podem. 

Para que se desviem do nada. Para que se desviem do tráfico. Para que se desviem da violência e possam beijar a vida. 

Para que, daqui a meio século, estejam vivos para dar o seu depoimento."