3.9.12

O caderno secreto de oXo
Lourenço Cazarré

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    1. O poeta Orestes Francisco de Oliveira faleceu aos nove dias do mês de setembro de 1965, de causa desconhecida.

Morreu dormindo, disseram seus familiares.

    2. No dia sete de setembro de 1965, estávamos – um punhado de gurias e guris nervosos, de onze e doze anos – no altar da Pátria, para receber as medalhas que tínhamos conquistado nos grandes concursos lítero-históricos da cidade: Duque de Caxias, Tiradentes e Batalha Naval do Riachuelo. Era uma tarde nublada, cinzenta mesmo.

Dentre os agraciados, eu era o mais ansioso porque receberia duas medalhas: ouro por Caxias e bronze por Tiradentes.

De repente, discretamente, uma senhora da organização abaixou-se para mim e sussurrou:

– Alguém que tu amas muito vai te entregar os prêmios, meu querido.

Mistério!


Bem, naquela época, eu amava três pessoas – meu pai, minha mãe e meu avô paterno.

O altar da Pátria – erguido entre as altas árvores da praça, no lado que dá para a Avenida – consistia em um palco elevado coberto por um telhado de chapas de zinco.

O que mais me intrigava naquele palanque era o fogo sagrado. Colocado em cima de um aparador, havia um estranho objeto de ferro - parecia um balde - do qual se desprendia permanentemente uma pequena chama. Ele estava um pouco afastado da grade da frente do altar, de modo que os debochados não pudessem acender seus cigarros ali.

Nós, a piazada, estávamos bem na frente de modo a sermos vistos por todos. Éramos o exemplo a ser seguido: a juventude estudiosa, o futuro sorridente do Brasil.

Às cinco e meia, o presidente da Liga de Defesa Nacional, o professor Nhambiquara de Souza, foi ao microfone e disse assim:

– E agora, antes de darmos início à cerimônia de premiação dos vencedores dos concursos lítero-históricos, ouviremos um poema laudatório da lavra do consagrado vate Orestes Francisco de Oliveira.

Homem alto e magro, o poeta era quase inteiramente calvo. Como seus raros fios de cabelo estavam concentrados numa estreita faixa lateral, as grandes orelhas de abano assumiam um papel destacado na cabeça brilhante. O rosto, fino e comprido, tinha seu centro determinado por um poderoso nariz de vastas narinas. Seus longos braços terminavam em punhos grossos, mãos imensas e dedos fortes.

Orestes Francisco de Oliveira era muito respeitado na cidade: todo domingo publicava um poema no Diário.

Sob palmas, o poeta laureado – ganhador do concurso de poemas do bicentenário da cidade – dirigiu-se ao microfone.

Era um homem de bruscos movimentos faciais. Testa, sobrancelhas, olhos, bochechas, nariz e boca pareciam mover-se independentemente da vontade dele, como se, o tempo todo, o pobre estivesse recebendo pequenas descargas elétricas no rosto.

O poeta levou a mão direita ao bolso interno do paletó. De lá retirou a folha, dobrada em quatro, na qual datilografara o poema.

Começou, então, um estranho bailado.

A folha escapou dos dedos dele. Ao se vergar para pegá-la, o coitado enfiou a testa no microfone. O pedestal que sustentava o microfone, por sua vez, inclinou-se para frente e começou a despencar. O poeta levou a mão direita à frente para segurar o pedestal, mas só conseguiu empurrá-lo.

Tensas e preocupadas, as pessoas que estavam sobre o palanque e também os homens mais altos da plateia pressentiram um desastre. Ergueu-se no ar um sussurro de espanto. Mas também, devo admitir, explodiram umas risadas. Risadas debochadas, claro.

O microfone caiu dentro do fogo sagrado.

Rápido como um raio, o poeta meteu as mãos no meio das brasas e resgatou o microfone. Depois, pôs-se a soprar a ponta dos dedos chamuscados.
As risadas passaram a gargalhadas.

Recolocado o microfone no pedestal, o professor Nhambiquara murmurou:

– Um, dois, três, testando, um, dois, três, testando.

Felizmente, o microfone continuava funcionando.

 Vamos em frente! – sorriu o professor.

Refeito, Orestes Francisco de Oliveira, mais uma vez, alinhou-se diante do microfone já empunhando a folha na qual datilografara o poema.

Ao fixar os olhos no papel, o poeta percebeu que não conseguiria ler o que ali estava escrito sem a ajuda dos óculos. Desatento como todos os artistas, esquecera de datilografar em maiúsculas, coisa que fazia sempre que pretendia declamar em público.

Com movimentos muitos rápidos, ele apalpou-se com a mão esquerda. Bateu nos bolsos laterais do paletó e no bolsinho superior. Nada. Na mão direita erguida, ele continuava a sustentar o poema.

Notei um certo alívio naquele rosto angustiado quando o poeta localizou os óculos no bolso traseiro direito da calça.

Teve início, a seguir, a intrincada operação de resgate dos óculos. Orestes Francisco de Oliveira, que não era um homem prático, não teve a ideia óbvia: passar o poema para a mão esquerda e usar a direita para pegar os óculos. Não, ele tentou apanhar os óculos com a esquerda, mantendo a direita à frente, com o poema desfraldado.

Os risos cretinos renasceram.

Era dramática a luta do poeta contra o botão da calça.

Acontece que ele não tinha o perfeito controle dos dedos da mão esquerda, que havia fraturado, anos antes, ao cair numa escadaria íngreme.

Reconheço que o poeta fazia gestos estranhos. Admito até que fossem um tanto cômicos.

Uma gaitada uníssona tomou conta do público.

O pessoal que estava no palco tentava abafar o riso.

Afinal, ali era o altar da Pátria. Mas o povo da plateia ria que se esbaldava. A cidade inteira, ali reunida para festejar a independência, gargalhava. As pessoas riam não do poeta, que Deus os livre, riam do homem desengonçado.

Então, para pôr um fim àquela situação, o poeta jogou para o alto o poema. A folha subiu no ar úmido e ele, muito rapidamente, pode levar a mão direita ao bolso traseiro.

Abriu o botão e apanhou os óculos, mas percebeu que o poema começava a despencar, perigosamente, em direção ao fogo sagrado. Como era um dono de péssima memória, incapaz de decorar frases de três palavras, precisava salvar aqueles versos a qualquer preço.

Decidiu voar em direção ao poema. Logo seu corpo magro estendeu-se no ar, como o de uma saracura atravessando um banhado. Conseguiu apanhar a folha antes que ela chegasse às chamas, mas não pode controlar o final do voo, ou seja, a aterrissagem. Entrou de cabeça no receptáculo em que ardia o fogo sagrado. O balde de ferro desprendeu-se de sua base e rolou – espalhando fagulhas e brasas – em direção à beira do palco.

As pessoas que estavam no gargarejo iniciaram um súbito movimento de recuo. Alguns dos que estavam um pouco mais atrás caíram, e logo foram pisoteados pelos que retrocediam. Perdi de vista meus pais no meio da massa.

Instalou-se o caos. Da multidão veio, primeiro, um rugido de mar furioso. Depois, comecei a discernir os gritos de espanto dos berros de horror, as pragas dos xingamentos.

As altas autoridades – prefeito, juiz, promotor e diretora regional de ensino – avançaram para a beira do palco, torcendo para que tudo aquilo não passasse de um grande susto, sem mortos e feridos.

Deixando o cercado de fitas coloridas em que nos encontrávamos sitiados – nós, as crianças-prodígio –, corri para o poeta, que, deitado no chão, zonzo, segurava na mão o seu poema.

– O ridículo mata – disse-me ele, antes de desmaiar.

Não houve entrega de medalhas naquele dia.

    3. Na sua edição de nove de setembro, dia da morte do poeta, o Diário publicou a seguinte nota:

Como é do conhecimento geral, devido a um pequeno incidente, o poema dedicado à nossa cidade, pelo transcurso da data magna da Pátria, não pôde ser lido naquela ocasião pelo conceituado aedo Orestes Franci sco de Oliveira. Assim, nós o publicamos hoje para que a cidadania sul-taperense possa usufruí-lo na íntegra.


Brava e heroica Tapera do Sul


Mil musas seriam necessárias
Para que eu, pobre vate inútil,
Pudesse engendrar bravas árias
Cantando teu caráter inconsútil.

Sagrado berço de povo ordeiro,
Tu, formosa cidade de Tapera,
És do extremado Sul o luzeiro,
De toda a terra a mais sincera.

Princesa, dedico a ti estes versos
Humildes, vagos, pobres, toscos, porém que
Gravam teu nome no vasto universo.

Tapera adorada, berço de heróis,
Na dura altivez dos meus poemas
Fulgura a chama de teus arrebóis.


    4. Em janeiro de 2005, tive a oportunidade – por motivo que não declinarei – de passar uma semana na casa em que nasceu, viveu e morreu o poeta Orestes Francisco de Oliveira, na cidade de Tapera do Sul. Pude então reler os dois livros que publicou em vida: O Fascinante Cintilo das Pérolas Negras e O Fabuloso Brilho das Estrelas Cadentes. Certo dia, escarafunchando no escritório do poeta, descobri um fundo falso em uma das gavetas de sua escrivaninha. Lá dentro havia um caderno de poemas. O último deles havia sido escrito na noite de sete de setembro de 1965.

    5. Lia-se na folha de rosto do caderno:

Este bem inservível pertence ao cidadão Orestes Francisco de Oliveira, falsa identidade de um poeta que se chamou, de início, orestesXicoliveira e, depois, simplesmente, oXo. Mais que um nome, oXo é um olhar, uma radiografia. Abjeto, como os demais integrantes da chamada humanidade, oXo é um ser ínfimo e ridículo, perdido numa cidade de merda, localizada entre Nada e Coisa Nenhuma, onde se vive como ovelha, balindo, e se morre como burro, zurrando. Este caderno destina-se, pois, à invisibilidade e ao esquecimento. Mas se, por acaso, vier a ser encontrado, pedimos a seu descobridor que não o leve à luz. Aqui estão reunidos apenas desabafos pueris de um idiota. Há palavras demais no mundo.

    6. Primeiro detalhe: os poemas escritos por oXo eram de forte conteúdo erótico (pornográficos, na verdade), de crítica à religiosidade (inequivocamente blasfemos), de ataque às instituições políticas (furiosamente anarquistas) e de fundo desprezo pelos seres humanos, que, em mais de uma ocasião, o poeta chama de “meros produtores de bosta”.

    7. Contrariando em parte o desejo expresso por oXo, transcreverei aqui o poema escrito por ele na noite de sete de setembro de 1965.

O derradeiro ridículo


O meu primeiro eu é um magano,
Astro do fingimento, um poetastro,
Que se alimenta de farsa e engano,
Um bobo do burgo, um mago do logro.

Palhaço, perante bovina multidão,
Ignara, formada por viventes broncos
(Humanos são ainda menos que troncos),
Padeceu pungente dor e humilhação.

Como não há heróis de couraça,
E como aqui só viceja o nada,
Fumaça, tramas vazias e trapaça,
Caiu preso na sua própria cilada.

Aquela sua única plateia
Desejava, cega, covarde, molenga,
Saber-se invencível na peleia,
Ainda que numa récita capenga.

Sois os mais bravos entre os rudes,
Dir-lhes-ia o poeta naquela vez
Com impiedosa insinceridade.

Mas, ante o ridículo arremate,
Partiu-se a mola que impelia
Aquele falso eu, o primeiro vate.

Encarando o espelho aziago,
Sobrou-me apenas meu segundo eu,
Irado poeta do espaço largo.

Cantador do deserto cotidiano,
Amante frio do sexo sem amor,
Fanático profeta do de(u)s)engano.

Rebento do absurdo e do acaso,
A vida é uma cavalgada sôfrega
de machos e fêmeas, nua refrega.

Qual dos dois poetas simplórios
Eu não saberia julgar e condenar –
Foi mais precário, provisório?

    8. Segundo detalhe: o poeta oXo, Orestes Francisco de Oliveira, era meu avô. Por parte de pai.


Do livro Exercícios espirituais para insônia e incerteza (IEL / Corag, 2012)