24.9.12

Arnaldo Campos: um lutador solitário
Armindo Trevisan

Publicamos aqui uma homenagem de Armindo Trevisan a Arnaldo Campos - escritor, livreiro, bibliófilo e ex-diretor do IEL falecido recentemente.



I


À medida que perdemos os amigos, percebemos o quanto eles – apesar de estarem próximos de nós – estavam distantes de nós. 



A ilusão, da qual não conseguimos livrar-nos nunca, é que a amizade supõe conhecimento. 



Sem dúvida, ela também implica conhecimento. 

Não nos iludamos, porém: a amizade aproxima-nos mais daquilo que os amigos não são do que daquilo que eles são. 

Não temos a pretensão de penetrar tal enigma. 

Digamos que amar um determinado ser humano consiste, quase sempre, em desejar que ele seja o que desejamos que ele seja – e não o que ele é. 

As pessoas, portanto, não são o que desejamos que elas sejam. São elas mesmas, um conjunto original de fatores físicos, neuronais, culturais, socioeconômicos. 

São, além disso, um conjunto insubstituível de sentimentos e emoções, que elas mesmas construíram. 

Como penetrar em tão misteriosa trama, cujas chaves psíquicas fogem de nossas mãos?




Arnaldo obriga-me a formular tais questões, agora que está morto. 


II

Ele nos impressionava com sua fundamental honestidade. 

Nós mesmos poderíamos apresentar numerosas provas dela. 

Mas que significariam tais provas? 

Para muita gente, ele era um livreiro complicado, de problemático êxito econômico. Às vezes, de nenhum êxito econômico. 

As pessoas que não têm êxito econômico dão (com frequência) a impressão de desonestas. Atrasam pagamentos ou os esquecem. Prejudicam involuntariamente seus parceiros. 

Arnaldo não desprezava o dinheiro. À luz, porém, da praxe comercial em voga, parecia desprezá-lo. Nunca teve estabilidade financeira. No entanto, esse indivíduo era sempre o primeiro a pagar o cafezinho, a assumir despesas que deveriam ser parceladas entre os amigos, a ser generoso à outrance

Arnaldo era um indivíduo intrinsecamente bom. 

Mas como entender a bondade num mundo onde tal conceito está mesclado à esperteza, ao uso e usufruto do egoísmo, à malícia? 

Nosso amigo vivia à margem desse mundo. E, talvez, de qualquer mundo possível. 

Vivia, ou antes flutuava, numa espécie de esfera de bondade pura. 

Nisso consistia sua notória grandeza, e também seu fracasso. 

Nunca foi capaz de aceitar as limitações da justiça, e a falta de solidariedade, clandestina ou resvaladiça, da sociedade. 

Todos fazemos, com certa frequência, uma constatação: tomados como indivíduos, os seres humanos parecem ser, e talvez o sejam, autenticamente solidários. Tomados como espécie humana, não o são. 

A solidariedade dilui-se na luta-pela-vida, no esforço para dar o leite aos próprios filhos, no combate um tanto inglório para não deixar a peteca cair. 

Num indivíduo como o Arnaldo, a preocupação pelos fragilizados, marginalizados, e excomungados, era tão intensa que lhe nublava a lucidez, induzindo-o a uma sorte de tolstoianismo inútil. 

Como ser humano, digamos mais uma vez, ele parecia ser o indivíduo melhor vocacionado para o amor. Não o foi. Espanta ver como, no âmbito estritamente pessoal, ele não se deu bem. Quem explicaria sua “falta de sorte” e até sua dupla incompreensão, a dele em relação aos seus, e a dos seus em relação a ele? 

Em termos de amizade, duvido que alguém se dispusesse a atirar-lhe a primeira pedra. Ou um seixo qualquer. Digo mais, exagerando: ninguém o “feriria” com uma pétala tombada de um jacarandá florido da Praça da Alfândega. 


III

De mim para mim, admito: seria melhor não se meter por esse Grande Sertão: Veredas dos relacionamentos humanos. 

Que sabemos uns dos outros, ou de modo mais tangencial, dos assim ditos outros? 

É fácil descartá-los, à maneira de Jean-Paul Sartre: “Os outros são o inferno”. Ou ao modo de São Francisco, que beijava os leprosos, e preferia ser esmagado a esmagar. 

O Poverello de Assis era tão cristão que adotou, levando à incandescência ética, um aforismo evangélico: “É dando que se recebe”. A canalhice mental contemporânea converteu esse aforismo num bordão da malandragem. 

Sinto que, ao tentar captar a substância da vida concreta desse amigo e escritor, não cheguei a aflorá-la. 


IV

Abordemos outro aspecto de sua personalidade: que tipo de escritor foi Arnaldo? 

Foi um escritor talentoso. 

Talvez – para ser mais exato – foi um escritor sofrivelmente talentoso. 

Ele escrevia como se tirasse de si pedaços de carne. Padecia da obsessão do realismo, da vontade de suprimir a distância entre a palavra e os fatos. Pior ainda: angustiava-se por não chegar a tocar nas feridas sociais, nas hipocrisias sancionadas, nas sacanagens convertidas em desculpas. 

Do ponto de vista estilístico, sua escrita desagrada aos leitores. 

É uma escrita sincopada, que dói. 

Não há quase imaginação nos textos de Arnaldo. Ele pertencia ao tipo de escritor que cavouca na memória. Que lhe mete a picareta para encontrar, no mais fundo de si, a infância, que acaba constituindo a explicação para sua miséria, e para a miséria de seu povo. 

Seus contos e romances são esboços de realizações. São textos gloriosamente interrompidos, que morreram antes de chegar à praia. 

Talvez se deva dizer dele que foi um escritor, até um escritor de valor com seus romances: O Degrau e Réquiem para um Burocrata, porém seu mérito é o de uma obra limitada, que ganha ao ser lida uma segunda vez, desde que se tenha um mínimo de generosidade para com o autor. 

A mesma generosidade que ele inseria nos seus textos, na ânsia de conduzir o leitor à lucidez, e ao desfrute da obra literária. 


V

Este texto é um texto à maneira do próprio Arnaldo. 

Um texto que se recusa a mentir, e que, por outro lado, se recusa a ignorar o valor de sua personalidade rica, generosa em ambição, e de uma confusão pessoal comovedora. 

Ele foi um ser humano que fez tudo para ser simples, embora não o tenha logrado. 

Foi um intelectual típico do nosso tempo, solicitado por impulsos contraditórios, que viveu dentro de uma exiguidade econômica incompreensível – levando-se em conta sua dedicação real ao trabalho, que poderia fornecer-lhe maiores recursos e maior conforto. 

Meu voto íntimo é que Deus lhe dê a Paz, a paz que ele merece, por ter sido um impressionante lutador solitário.

A.T.

Veja também:
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