21.10.11

Fragilidade
Jane Tutikian

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De dentro do meu aquário, protegida do mundo, o vento que lá fora faz dançar as folhagens desenterra os meus mortos e me renasce, criança, aos doze anos. Criança? Protestarão as moças de doze anos. Naquele tempo era. E era mais - uma rua estreita - as  casas coladas, sem cor e sem número - ilhada entre prédios luxuosos que cresciam dia a dia, embalada pelo movimento de carros e ônibus e bondes e carroças e que passavam lá fora, desencorajados de cruzá-la. 





    Para uns, ela não passava de um beco. Para outros, como os vendedores, ela simplesmente não significava. Mas para nós era muito ou quase tudo.

    Claro, algumas vezes sentíamos vergonha da nossa pobreza, porque algumas vezes se sente vergonha de não ter mais, mas no mais das vezes costumávamos dividir nossa miséria, transformando-a senão em fartura, pelo menos em variedade: se a Dona Nair fazia sopa, ela mandava uma xícara e a minha mãe dava um pouco de feijão para Dona Maria que retribuía com um ensopado de abóbora. E depois do almoço sentávamos nas portas e calçadas, com o sol que esquentava o inverno, e comíamos laranjas e vergamotas. As mães aproveitavam para falar dos planos que tinham para os filhos: neles sempre constava uma passagem pelo armazém do Seu Oliveira ou pelo armarinho da dona Kátia. E nós brincávamos alheios a qualquer preocupação. Éramos felizes, a nosso modo, mas felizes. Eu?

    Não, não posso dizer que não houvesse brigas. Havia e muitas. E geralmente eu estava lá, os cabelos muito curtos, a roupa suja, o rosto atestando o roubo dos chocolates do Seu Oliveira, os pés descalços, as mãos na cintura, botando a boca no mundo. No mundo que eu conhecia cara a cara e palmo a palmo, o meu. Onde, apesar da minha aparência de menos menina do que realmente era, eles compreendiam que no fundo, no fundo eu não era totalmente má. Que o limite da minha implicância, longe de ser a malícia, era apenas a briga da infância que insistia em permanecer num corpo que a adolescência começava a marcar.

    Numa daquelas tardes de pouco sol e de muito frio ele apareceu. De repente estava lá, sentado no cordão da calçada encolhido no seu pouco agasalho. 

   Quando, no meio de uma brincadeira e outra, o descobrimos, ficamos, de longe, observando como se fosse um animal raro. Depois, passado o primeiro impacto, nossas reações começaram a divergir. Houve quem fugisse para casa num choro desesperado, houve quem atirasse pedras acompanhadas de desaforos, houve quem se escondesse em algum canto estratégico para melhor poder estudar a situação, pondo em risco apenas um olho amedrontado, houve quem, como eu, ficasse parado e depois fosse se aproximando, lentamente, se aproximando com mil perguntas. E ele ali, petrificado, distante de qualquer movimento ou emoção, apenas tremendo e tremendo muito.

    Eu também tremia, mas nossos motivos eram diferentes, também sentia medo, mas já naquela época eu tinha consciência de que criança pode correr todos os riscos em nome da ingenuidade, e corri. Fui a primeira a falar, perguntei o nome? a idade? e onde morava?, perguntas que eu estava acostumada a responder e respondia com raiva porque à minha resposta seguia sempre o mesmo comentário: "Já está ficando mocinha". Ele não disse nada, continuou petrificado, movimentando apenas os olhos. Perguntei de novo e uma última vez, ainda, mas ele continuou inerte.

    Logo as mães começaram a se aproximar. Algumas tentaram também o diálogo, mas muito antes que eu, descobriram que ele era mudo, o que me penalizou. Moço, quase um guri, cabelos crespos e gordurosos, moreno, cor de cuia, ele era bonito e não podia falar. Aquilo me espantava, não poder falar era muito mais do que eu podia aceitar, para mim era como estar morto sem estar, e naquela noite foi a primeira vez que eu fiquei de mal com Deus. Como é que alguém podia viver se não podia ouvir ou falar? Como é que podia dizer que gostava ou que não gostava, que queria ou não queria porque, claro, eu sabia que existia, mas nunca tinha visto um assim, tão perto de mim e tão bonito, coitado.

    Dona Nair trouxe um pouco de massa. Dona Maria sopa. Minha mãe trouxe a roupa de casamento do meu pai. Dona Helena trouxe uma capa de chuva e nós saímos a procurar sapatos. Orgulhosos arrecadamos sapatos, gravatas, cigarros e até um isqueiro dourado.

    Ele pegou a comida, levou até bem perto dos olhos, cheirou, lambeu, cheirou novamente e se pôs a comer, desesperadamente, comer e a tremer cada vez mais, como se estourar fosse o modo de conservar aquele momento para sempre. Depois, largou o prato lambido até o último resquício de comida e pegou as roupas. Levou até bem próximo dos olhos, cheirou, esfregou no rosto e sorriu com uns dentes brancos cravados naquela cor marrom que ele tinha. Os guris mostraram uma casa desocupada. Ele arrombou, entrou, tomou banho, se vestiu e sentou na porta fumando, demoradamente, fumando um cigarro numa paz muito agradecida.

    Todos fomos dormir contentes por termos feito alguma coisa para alguém e só o meu contentamento conseguia diminuir um pouco a seriedade da briga que tive com Deus.

    Dia seguinte, me mandaram embora do colégio, primeiro porque briguei com a minha professora de religião, depois porque a professora de classe terminou estragando meu estômago quando, para falar de herbívoros e carnívoros, mostrou um gráfico em que os animais comiam uns aos outros e os menores e mais fracos, justamente os que gostava, eram os perdedores. Meu estômago, torturado, queria fugir dessa confusão que se chamava justiça e equilíbrio e sei mais o quê, lançados por olhares severos amparados por um par de grossas lentes escurecidas. No meu território as coisas não andavam dessa maneira. A servente me devolveu a ele.

    Lá, mais trabalho: encontrei Charles - esse foi o nome que escolhi para ele, não sei, até hoje, se gostaria de ser chamado assim, mas era o nome que atendia aos meus primeiros apelos românticos - encontrei Charles sentado na porta todo rasgado, um corte na testa, sem sapatos e com um olhar imensamente triste. Não tentou me dizer nada, mas a evidência de que tinha sido roubado era clara demais para mim.

    Não, não fiquei chocada. O encantamento da véspera - todo mundo ajudando - ainda estava muito presente. Por isso, corri em casa e peguei um prato de comida, mas meus pais reclamaram, sustentar um estranho era a última coisa em que pensavam. Mesmo assim, consegui um bom prato que ele cheirou e depois comeu, nervosamente, comeu antes que pudesse perdê-lo. Fui, então, tratar das roupas. Arranjei pouca coisa. O que se tinha e podia dar já se tinha dado no dia anterior. Além disso, não é preciso ser bom todos os dias porque uma Ave-Maria serve como penitência para mais do que um pecado. Na marotice de criança esperta eu conhecia bem as medidas.  Mas Charles ainda ficou contente uma vez. Eu? Tanto quanto no dia em que achei meu gato e dei comida e peguei para mim. Não. Mais, mais porque Charles era um homem, menos arisco e mais desprotegido. Naquela noite fiz as pazes com Deus porque achei Charles e o peguei para mim.

    Na manhã seguinte não fui à aula. Ia saindo para o colégio quando vi Charles sentado na porta, novamente rasgado, sem sapatos, um olho inchado num olhar imensamente triste. Voltei, peguei um café com pão, porque prometi: era a última vez. Dei a ele e fiquei sentada ali, olhando para o chão desconsolada, nós dois sabíamos que não conseguiríamos mais roupas e afinal estávamos todos na mesma luta e que ele continuaria como chegou: com frio e fome.

    Charles cheirou profundamente o café, depois bebeu. Embrulhou o pão num jornal, levantou, encostou a porta e foi saindo, devagarinho, foi saindo, embora.

    Eu fiquei parada no meio da minha rua estreita de casas coladas, com o meu cabelo muito curto, o meu guarda-pó encardido e o meu sapato querendo furar no dedão. Eu fiquei parada tentando decifrar qual o lugar que caberia a Charles naquela escala de animais, qual seria o meu lugar e de todos os outros. Na mesma esquina em que Charles sumiu eu vi surgir a vida. Desta vez meu estômago não resistiu mesmo. Minha mãe me levou para a cama, vomitando a alma, porque perder três dias de aula é muito. "Se não quer estudar, vai trabalhar." Eram duas as opções: ou o armazém do Seu Oliveira ou o armarinho da Dona Kátia.