19.4.11

TRECHOS DO ACERVO

UMA VISITA INESPERADA
ALVARO MOREYRA

    Eu tinha acabado de almoçar e andara depois, abrindo e fechando livros, indeciso, sem idéias, a sorver, lentamente, a fumaça de um charuto, e a espalhá-la no ar... Afinal, não me defendi mais. Deixei que os passos vagarosos me levassem até aquela poltrona. Caí sobre ela com uma preguiça inelutável...
    Era domingo. A preguiça dos domingos é um dos sérios prazeres da vida. Fiquei ali, deliciado. Uns sons vagos de piano davam piparotes simpáticos nos meus ouvidos. Vozes confusas e risos em eco, de gente que seguia, rumo do football, misturavam-se, na hora lânguida, ao rumor dos automóveis pelo asfalto.
    
    Fechei os olhos, pouco a pouco... Dormi...
   Quando acordei, ele estava diante de mim, nu, e perguntava-me:
   - Não me conheces?
    Pus-me de pé, escandalizado. Perguntei, vermelho de espanto:
    - Quem é o senhor? E que intimidades são essas de entrar na sala de trabalho de um homem honesto?
    - Não me conheces, então?
    - Não, senhor.
    - Ingrato!
    - Oh! Mas não há polícia nesta cidade!!
    - Se te chamei de ingrato, meu amigo, não quis ofender-te. Vou confessar quem sou...
    - Confesse. E não me trate por tu.
    - Sou o Brasil. Ando nu porque me descobriram. De 22 de Abril a 3 de Maio, todos os anos, ando assim, por celebração... O intervalo entre as duas datas, a primitiva e a atual, é um tempo contente, que eu aproveito, divertindo-me.
    - Querido Brasil!... Como havia eu de reconhecer-te nesse corpo forte, nessa alegria que te esbrazeia, de cima abaixo. Disseram-me tanto mal de ti, que estavas doente, que não passavas de um imenso hospital... e que eras estupidíssimo...
    - É um gosto do meu povo: dizer mal. É mais do que gosto, é hábito...
    - Tens queixas do teu povo, e queixas muito naturais...
    -Não, não tenho nenhuma queixa. Amo-o assim. Assim é que ele deve ser. O meu povo não pensa. E eis uma qualidade notável. O meu povo bate palmas e atira pedras. É infantil, é ingênuo, é feliz. De vez em quando, enche-se de paixão por mim e, enquanto a paixão dura, não existe país que se me compare... Em seguida, extinto o entusiasmo, vocifera, maltrata-me. Não me incomodo. Cada qual conforme Deus o criou. Eu cultivo a indulgência e o otimismo. Recebo com o mesmo sorriso as palavras de carinho e as palavras de crueldade... Se me alcunham de perdido, - sorrio. Se me declaram maravilhoso, - sorrio ainda. Não vale a pena sofrer. Sofrer é uma distração aborrecida. Deixo o tempo fugir... Um homem antigo, da Grécia, chamado Demócrito, afirmou que o bem supremo é o bom humor, e é nada temer, e é viver serenamente.... Concordo com ele.
    - Eu também. O que me não impede de indagar a tua opinião sobre as festas do Centenário...
    - O Centenário da minha independência?... Não sei. Creio que vão cantar “O Guarani”...
    - Vão.
    - “O Guarani” perturba enormemente a reputação de que eu poderia gozar nas terras estrangeiras. Agora, desde que entrei,  no “concerto das nações”, seria razoável uma substituição de partitura. Carlos Gomes foi muito interessante. Teve, como se costuma dizer, “a sua época”. Ora a época de hoje, ao menos na aparência, mudou um pouco. Deviam mudar, do mesmo jeito, aquela música sem modos por outra mais comedida, mais diplomática... Pois não viveram Leopoldo Miguez, Araújo Viana, Glauco Velasques, Alberto Nepomuceno? Não vivem uns três ou quatro compositores excelentes?
    - Viveram... vivem...
    - Oh! aqueles índios! aqueles índios! E o  mundo inteiro a imaginar que eu só produzo índios, índios tenores, índios coristas!...
    - Na verdade, é comprometedor “O Guarani”. Entretanto, o teatro servirá de compensação. O teatro nacional toma parte no programa.
    - Sim? Resta saber qual das duas atitudes receberá a honra de ser posta no programa. Há duas atitudes, mais ou menos definidas, no teatro nacional, duas atitudes que ficam bem representadas em duas atrizes: a circunspecta Itália Fausta e a brejeira Otília  Amorim. A protagonista da “Ré misteriosa” para numa extremidade. Na outra extremidade para a figura principal de “Vamos deixar disso”... Entre elas, aparecem, como nuanças, Apolônia Pinto, Adelaide Coutinho, Lucília Peres, Abigail Maia, Iracema de Alencar, Ema de Souza, Davina Fraga, Sílvia Bertini, Alzira Leão, Céu da Camara, Pepa Delgado, Júlia Martins, Laís Areda, Wanda Rooms...
    - Suponho difícil a escolha...
    - Talvez, por essa dificuldade, o teatro nacional não consiga um pequeno lugar na lista das solenidades...
    - Ou, então, pode acontecer que o diretor do Patrimônio da Prefeitura contrate com o empresário vitalício do Municipal uma companhia francesa, italiana, espanhola ou portuguesa, para “preencher a lacuna”...
    - Tudo é possível.
    - Se não, contenta-se com o arrasamento do Morro do Castelo e a Exposição Universal...
    - Contento-me com qualquer coisa...
    O caro Brasil sentou-se e, sem nenhum propósito, contou-me uma anedota. E, atrás dessa, mais uma dúzia...
    Era uma noite escura, quando nos separamos.
    Que visita inesperada! Mas que rapaz agradável!

(Letras Rio-Grandenses - Álvaro Moreyra. IEL, 1990, Org. Regina Zilberman)