13.3.11

-LARA DE LEMOS e O COCHILO DO VERDUGO

 
       Neste texto especial para o blog do Instituto Estadual do Livro, Maria Carpi presta homenagem à poeta, professora e jornalista Lara de Lemos (1923-2010), a quem foi dedicado o 14º fascículo da série Autores Gaúchos (1987). De Lara, o IEL também publicou Amálgama (1974), Lara de Lemos: antologia poética (2002, organizado por Volnyr Santos) e Passo em falso (2006), sua última obra.

Lara de Lemos, poeta editada pelo Instituto Estadual do Livro, na foto com Mario Quintana



  


Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis.
Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere)
    
        Em todos os regimes despóticos, pessoas tombam e outras sobrevivem. Os sobreviventes têm a missão de falar pelos que tombam. A violência, segundo Hannah Arendt, é a desintegração do poder que, inerente à comunidade política, se configura como a capacidade para agir em conjunto. Na tirania não há escolha nem consenso, apenas um funil ideológico por onde são empurrados os indesejáveis. Isso ocorreu em todos os tempos e em todas as ditaduras e fundamentalismos. E os sobreviventes são o cochilo do verdugo.
   
     Poderia tê-los matado ou assim pensou que fizera quando não lhes escutou a tênue respiração que restava. Ou o ferimento, se esquivando do coração, não foi fatal. Ou o verdugo estava cansado de tantas encomendas num só dia.  Mas aquele pequeno sopro de vida tinha a missão de levantar a chama dos que pereceram. Os holocaustos são uma prova viva dessa missão de prosseguir.
    Pensamos: isso só ocorre com os outros, como a morte é sempre alheia. E de repente, também estamos enredados. Ou fechamos os olhos ao enredo. E saindo de um longo pesadelo de ditadura e da mordaça, começamos a acreditar na democracia. Não apenas representativa, mas participativa. Do tratamento tutelar ou ao reboque do capital, para uma efetiva construção do bem comum em todos os espaços públicos.
    E aqui lembro e presto homenagem a uma poeta que recentemente nos deixou, Lara de Lemos, sobrevivente ao sistema da delação e da tortura.  A mesma que escreveu o poema do Hino da Legalidade. E após ser arrastada aos porões da ditadura com seus filhos, ao sair, reuniu forças para escrever, na missão de falar pelos desaparecidos, O Inventário do Medo. A esse livro Moacyr Scliar assim se refere: “Toda a sua aflição, toda a sua dor - que eram (e são) a aflição e a dor de milhões de brasileiros – estão nas páginas do Inventário do Medo. E acrescenta: “uma voz como de Lara tem de ser ouvida”. Uma voz que é testemunho, um medo transformado em coragem de testemunhar. O verdugo cochilou e Lara, em seu dizer poético, ungida com o sangue dos mortos e a teimosia do musgo, ainda pode cantar versos de pedra: “Só peço palavras duras, numa linguagem que queime”.
    Essa linguagem de Lara permanece viva em sua poesia de compromisso e beleza com nossa humanidade. Sim, precisamos ouvi-la. Ela e Lila Ripoll – outra poeta lírica gaúcha que também foi presa pela ditadura quando se encontrava enferma – não se eximindo do poema pátrio, não permitiram que o fel dos sonhos protelados impregnasse a poesia, fazendo-a justamente muito mais nobre e bela. Ambas querem-se poesia na liberdade para todos, como um pão a repartir. O alto lirismo de quem tem os pés no chão e quer caminhar com os demais. Ela nos diz: “o que te peço é simples, leve – um dia de sol, de paz, de dor nenhuma, breve.” A brevidade eterna da alegria de compartilharmos os bens da vida.
   E também cochilou o verdugo quando chegou a ponto de matar,  e não matou, uma jovem que seria eleita a primeira mulher Presidente do País. A história humana é um rio que sabe desaguar no mar do assombro.

MARIA CARPI
Defensora pública e poeta